Os Mundos e a Porta

Os Mundos e a Porta

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Tempestade do Deserto


Após algumas semanas de escuridão, Gobi volta a ver a luz do dia. Há que ver que um deserto é um deserto é um deserto. Sim, três vezes, para que não restem dúvidas.


A verdade é que Gobi é o relato de uma travessia. Por vezes, as travessias podem tornar-se mais difíceis ou mais aborrecidas. Dizer dez vezes que o barco navega em frente para atravessar o rio é um tanto ou quanto inútil. E quando a água começa a ser sempre a mesma, mais ainda. E se é assim para a água, que será para a areia de um deserto...


Mas por respeito às três pessoas que me inquiriram acerca do estado de saúde do meu Deserto de Gobi, aqui vai um hino à síntese das emoções e uma tentativa de reorientar este camelo que já vai cheio de sede e sem perspectivas de encontrar oásis algum.


A verdade é que a China cansa. Os chineses são diferentes. Aquilo que ao início é pitoresco e novidade torna-se exasperante, com o passar do tempo e a repetição das situações.


Não consigo habituar-me a que tentem sempre passar-me à frente nas filas, muitas vezes empurrando-me e pisando-me sem contemplações; a que me ignorem quando circulo de bicicleta, virando os seus carros para cima de mim, como se eu não estivesse lá; a que demorem demasiado a trazer a comida, isto quando não se esquecem ou não se enganam no pedido, reagindo depois como se não tivessem qualquer responsabilidade; a que não entendam e não façam qualquer esforço para entender coisas demasiada e universalmente simples, mesmo para uma criança de cinco anos de qualquer nacionalidade, quando falo ou gesticulo com eles; a que tenham nojo de assoar o nariz a um lenço, mas achem normal assoarem-se no meio da rua directamente para o chão, premindo a narina oposta àquela que estão a assoar; a que defequem em buracos colocados nas casas de banho mais grotescas, imundas e irrespiráveis que já vi e cheirei, frequentemente de porta aberta – isto quando há porta, indiferentes a quem passa; a que achem normal circular em contra-mão, seja na rua mais estreita ou na auto-estrada mais moderna, desde que seja na berma ou no corredor das bicicletas; a que recorram aos expedientes mais patéticos para entrarem mais tarde no trabalho, saírem mais cedo e no meio tempo fazerem o mínimo possível, entregando-se a uma espécie de letargia que os conduz muitas vezes a dormirem em pleno local de trabalho, placidamente, como se fosse a coisa mais legítima e normal do mundo; a que, nas cinco ou seis vezes por ano que chove, cada gota de água que cai do céu seja castanha, sujando e manchando roupas e peles com deus-sabe-lá-o-que-vai-neste-lixo-de-ar; a que gritem uns com os outros quando estão a conversar normalmente, em vez de falar num tom normal e muitas vezes berrando em cima de quem não está a participar na dita conversa; a que o céu esteja quase permanentemente escuro e empestado de um nevoeiro denso (versão dos chineses) que não é mais que uma sopa venenosa com o fumo dos três milhões de carros que circulam diariamente na cidade, das dezenas de centrais de carvão que ainda queimam vinte e quatro horas por dia, com a poeira das centenas de obras de construção que estão a realizar-se ao mesmo tempo, entre linhas novas de metro, super arranha-céus à NY style, estádios para os Jogos Olímpicos... E tantas outras coisas mais que até caem no esquecimento, de tão repetidas e inconscientemente tornadas “normais” para nós.


Os chineses são diferentes. Não são melhores nem piores que os outros. Eles - enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Mas são diferentes. E eu diferente deles. Contudo, no que diz respeito à cultura, aos hábitos e aos costumes, tenho o direito de afirmar que a minha cultura e os meus hábitos são melhores que os desta gente. Já não tenho o direito de querer ou muito menos de impor que eles adquiram os meus hábitos e os meus costumes. Mas posso e devo dizer que os meus são melhores. E tenho o direito de dizer e de sentir tudo isto. Porque se cair na chique tentação intelectual de dizer que não há hábitos nem costumes nem culturas melhores que outras, estou a denegar a minha própria cultura, a anulá-la, a rebaixá-la ao triste nível dos desta gente. E os intelectuais chiques entenderão isto facilmente, pois certamente defendem, por exemplo, que o costume e a tradição da tourada são pusilâmines, retrógrados, incivilizados, próprios de iletrados e de analfabetos. E eu, que não sou intelectual chique, também sou contra a tourada, mas só porque não gosto que tratem mal os bichos.


A China é gira. É gira, percebem? Percebem o meu tom de tia? É gira para viajar: por isso vou à estepe da Mongólia e ao início do Deserto de Gobi já este fim de semana e já fui a outros locais tão distantes e belos deste país-continente. É gira para passar férias: por isso recomendo a todos os meus amigos para cá virem, até porque têm onde dormir de graça – em Pequim, claro está. É gira para ganhar dinheiro: por isso cá fico e cá ficarei ainda mais tempo que o previsto se houver oportunidade para tal.

Mas não é gira em si mesma, no quotidiano real, que cansa e que mói e que só nos faz suspirar pelo sol de fim de tarde na Ponte D. Luís, pelo cheiro de maresia quando ainda se está a um quilómetro da Praia de Salgueiros, pela brisa fresca da manhã da Ribeira a tomar o pequeno-almoço na Esplanada do Cais, pela cor vermelha do céu do mar quando atravessamos a voar a Ponte da Arrábida... mas que no fundo podiam ser a Ponte 25 de Abril, as Docas, o Chiado, o Bairro Alto ou outro tesouro qualquer que na China só existe nas nossas memórias. É o nosso país, a nossa terra, que é grande e bela, mais bela que outra qualquer e que devia ser mais acarinhada e mimada por quem lá está, desde o pedinte mais anónimo ao primeiro ministro mais falso. Valorizem o país que têm. É só um e é lindo demais.


Vou esforçar-me por continuar a postar com frequência. Pelo menos, Mongólia e Gobi cá virão ter.


8 comentários:

Anónimo disse...

Com este post conseguiste transmitir o k a maioria de nós sentimos (julgo eu).. Fantástico..
Alguma vez tive saudades do cheiro a maresia, do transito caótico da av. boavista? Das obras na ponte do freixo? Só kd estamos fora, é que damos realmente valor a certas e determinadas coisas, e a saudade intensifica-se... Sim, a China é gira, mas a nossa pátria estará sempre no coração...

Clave de Sol disse...

Nem de propósito estas tuas palavras vão de encontro ao que ainda esta tarde falava com uma amiga, que também fez jornada idêntica, mas sozinha e para a nossa antiga colónia, onde, pelo menos, se encontram conterrâneos nossos: a China é gira mas cansa! Inacreditavelmente utilizei a mesma expressão. Inacreditavelmente, ou talvez não, os sentimentos dos que por cá estão se encontram na mesma frase, no mesmo suspiro de saudade e de lembrança de que embora longe estamos sempre perto do que mais gostamos e dos que mais sentimos falta. Faz-nos falta o nosso país, as confusões contra as quais tantas vezes praguejamos, mas que são as nossas confusões e sentimos falta dos cheiros e das sensações que também são as nossas, as dos outros, podem e devem ficar para eles. Por isso é que a China ou outro ligar do mundo será sempre um lugar de passagem e Portugal sempre um lugar para onde queremos sempre voltar.

Anónimo disse...

Volta, estás perdoado :)
hihihihihi

AVENTURA TT disse...

Quando dizia que tu não pertencias a esse "mundo", sempre era verdade, eheheheheheh!!!!

Diana disse...

A China é, sem dúvida, muito gira. Tive oportunidade de partilhar com esse novo mundo milenar, um curto longo mês da minha vida. E penso que não regressei a mesma pessoa, ou então, que confirmei a pessoa que sempre fui, mas que por vezes esqueço, adormecida pelos afazeres mundanos. A China fica no outro lado do mundo, mas lá existem também montanhas e água e sol como o nosso, vivem também árvores e pássaros e gatos e cães como os nossos, e existem seres humanos. São muito diferentes de nós, na sua fisionomia, nos hábitos diários, na leitura que fazem da realidade, no cunho de beleza e de minúcia desapressada que imprimem em tudo o que tocam e na sua atitude plácida (irresponsável aos nossos olhos e harmoniosa aos deles) perante a vida. Mas o que mais me surpreendeu e enterneceu na China foi a constatação prática de tantas teorias que li e que assumi como convicções pessoais, que agora aparecem traduzidas na tela do mundo real. É este facto de sermos todos humanos, de partilharmos, nos mais diversos cantos do planeta, aquilo que nos torna espécie - o genoma humano e tudo o que lhe está adstrito, e que caracteriza a universalidade do nosso comportamento e do nosso ser. Na China também se ama, também se odeia, também se sonha, também se teoriza, também se brinca, também se mata. Por isso, na China ou na Índia, ou no Quénia ou na Argentina, ou em Portugal, encontrarei sempre a confirmação daquilo que sou e daquilo que sinto: um simples ser humano que reafirma todos os dias o seu amor incondicional pela humanidade. A minha casa está onde estão os que mais amo, os que me conhecem, aqueles com quem partilho a minha intimidade. Neste momento tenho uma casa do tamanho de meio mundo. A distância que vai do Porto a Pequim, com um cantinho em Madrid.

Anónimo disse...

O choque de culturas parece inevitável... pelo menos o choque da tua cultura, a portuguesa, com aquela que te recebe, a chinesa... no teu post referes-te a duas culturas, sociedades – chamar-lhe-ia até civilizações –, radicalmente diferentes... tão divergentes e paralelas que se torna quase impossível estabelecer comparações racionais... apesar da globalização que tantos reclamam; não quero com isto deixar-te uma crítica desvalorizadora – de intelectual chique acossado – porque de facto compreendo-te muito bem, e partilho por completo a tua visão, sem maquilhagem de ocasião... já passei por experiências idênticas, uma coisa é o exotismo de 15 dias, outra à viver “embedded” numa sociedade que nada tem a ver com a nossa... parabéns pelo blog!

Anónimo disse...

O choque de culturas parece inevitável... pelo menos o choque da tua cultura, a portuguesa, com aquela que te recebe, a chinesa... no teu post referes-te a duas culturas, sociedades – chamar-lhe-ia até civilizações –, radicalmente diferentes... tão divergentes e paralelas que se torna quase impossível estabelecer comparações racionais... apesar da globalização que tantos reclamam; não quero com isto deixar-te uma crítica desvalorizadora – de intelectual chique acossado – porque de facto compreendo-te muito bem, e partilho por completo a tua visão, sem maquilhagem de ocasião... já passei por experiências idênticas, uma coisa é o exotismo de 15 dias, outra à viver “embedded” numa sociedade que nada tem a ver com a nossa... parabéns pelo blog!

McCap disse...

Anda lá...