Os Mundos e a Porta
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007
Amanhã Mostro-vos Os Meus Óculos Novos
Eu gostava dos meus óculos. Não me considero uma pessoa materialista, mas gostava deles. Todavia, como se trata de algo material, resolvi brindar o Povo Gobiano com um título à Margarida Rebelo Pinto, para variar um pouco o tom desta história.
Os meus óculos eram azuis. Os meus óculos eram bonitos.
Os meus óculos tinham uma lente que caía. A lente caía porque a armação tinha partido e como não havia fundos estruturais de coesão nem engenharia financeira possível que pudesse financiar a substituição desse equipamento social, mandei soldar a armação.
Mas a soldadura não foi bem feita e, qual soldado ferido em combate, a prova suprema do sacrifício e da dedicação daqueles óculos heróicos à causa Gobiana nunca cicatrizou devidamente.
A lente caía.
E sempre que a lente caía, eu apanhava-a. Via sempre a ferida a abrir, estava sempre lá para dar apoio ao meu velho companheiro de todas as horas. Pegava na lente, encaixava-a, afagava a armação, limpava a doente e a outra, com cuidado para não deixar cair novamente o já muito riscado pedacinho de acrílico.
Mas eu gostava deles. Como quem gosta de um cão muito velhinho, ceguito e cheio de peladas no corpo, mas que não se quer que morra, nunca.
Os meus óculos caíram. Uma última vez.
Amanhã mostro-vos os meus óculos novos.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007
Efeméride
Trata-se de uma efeméride. Assinalar o facto é já em si um acontecimento, pois permite-me usar a palavra, que é das mais feias que foi dada a conhecer à Língua Portuguesa. E-fe-mé-ri-de.
E as efemérides comemoram-se. Seja para festejar, seja para lamentar.
Cá vai a minha comemoração de um mês no mais antigo Império do mundo.
E as efemérides comemoram-se. Seja para festejar, seja para lamentar.
Cá vai a minha comemoração de um mês no mais antigo Império do mundo.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
Muralha da China?
Anteontem fomos à Muralha da China. Toda a gente sabe o que é a Muralha da China. Apesar de nem todos saberem que os seis mil e oitocentos que ela tem são quilómetros, não são metros, não é, amiguinho?...
Então e apesar de constituir suma arrogância de mais um lost in translation, dispenso-me de descrições exaustivas metidas a guia turístico sobre um monumento que é mais imponente do que qualquer fotografia ou qualquer diáriozeco internético conseguem ilustrar.
O que me interessa é contar que se trata somente de uma verdadeira metáfora sobre o permanente dilema humano do possível e do impossível.
O dilema humano colectivo, mas não só. Sobretudo, o dilema pessoal de conseguir definir objectivamente aquilo de que se é capaz ou não. A ironia é que essa definição nunca será totalmente objectiva, pois depende directamente do grau da capacidade de acreditar nos próprios sonhos e em si mesmo, o que subjectiva imediatamente a coisada toda.
Robert Baden-Powell, Fundador e Chefe Mundial dos Escuteiros e nascido faz hoje precisamente cento e cinquenta anos, era um homem à frente do seu tempo. Quando morreu, em mil novecentos e quarenta e um, deixou um ensinamento, desenhado pelo seu próprio punho, entre muitos e muitos outros:
Essa é que é a história e a mensagem da Grande Muralha da China. É um confronto com as categorias mentais que ciosamente vamos construíndo sobre nós e sobre o que nos rodeia, às pré-classificações do mundo que nos tranquilizam na cama quente do inevitável e nos dizem que ele é assim porque sim.
A Muralha é uma provocação directa e pungente às desculpas que, em jeito de mordomo corcunda de nós mesmos, vamos inventando e consolidando para justificarmos as nossas próprias preguiças, as nossas falhas, os nossos não consegui porque estava a chover ou porque estava meio adoentado ou porque tinha muitas outras coisas (inúteis) para fazer ou porque são maus para mim ou porque...
A verdade escondida de cada um, não dos restaurantes coreanos de Pequim, é aquela que está bem guardada no fundo dos nossos corações e da qual tentamos proteger-nos, por conforto e sobretudo por medo.
A incalculável capacidade de fazer coisas absolutamente extraordinárias, de estarrecer olhos e almas, coisas que nunca alguém imaginou possível mas à medida do homem, não do Homem. Que talvez seja mais fácil e menos maravilhoso erguer uma grande muralha na China do que dar ajuda, pedir perdão ou dizer amo-te.
Então e apesar de constituir suma arrogância de mais um lost in translation, dispenso-me de descrições exaustivas metidas a guia turístico sobre um monumento que é mais imponente do que qualquer fotografia ou qualquer diáriozeco internético conseguem ilustrar.
O que me interessa é contar que se trata somente de uma verdadeira metáfora sobre o permanente dilema humano do possível e do impossível.
O dilema humano colectivo, mas não só. Sobretudo, o dilema pessoal de conseguir definir objectivamente aquilo de que se é capaz ou não. A ironia é que essa definição nunca será totalmente objectiva, pois depende directamente do grau da capacidade de acreditar nos próprios sonhos e em si mesmo, o que subjectiva imediatamente a coisada toda.
Robert Baden-Powell, Fundador e Chefe Mundial dos Escuteiros e nascido faz hoje precisamente cento e cinquenta anos, era um homem à frente do seu tempo. Quando morreu, em mil novecentos e quarenta e um, deixou um ensinamento, desenhado pelo seu próprio punho, entre muitos e muitos outros:
Essa é que é a história e a mensagem da Grande Muralha da China. É um confronto com as categorias mentais que ciosamente vamos construíndo sobre nós e sobre o que nos rodeia, às pré-classificações do mundo que nos tranquilizam na cama quente do inevitável e nos dizem que ele é assim porque sim.
A Muralha é uma provocação directa e pungente às desculpas que, em jeito de mordomo corcunda de nós mesmos, vamos inventando e consolidando para justificarmos as nossas próprias preguiças, as nossas falhas, os nossos não consegui porque estava a chover ou porque estava meio adoentado ou porque tinha muitas outras coisas (inúteis) para fazer ou porque são maus para mim ou porque...
A verdade escondida de cada um, não dos restaurantes coreanos de Pequim, é aquela que está bem guardada no fundo dos nossos corações e da qual tentamos proteger-nos, por conforto e sobretudo por medo.
A incalculável capacidade de fazer coisas absolutamente extraordinárias, de estarrecer olhos e almas, coisas que nunca alguém imaginou possível mas à medida do homem, não do Homem. Que talvez seja mais fácil e menos maravilhoso erguer uma grande muralha na China do que dar ajuda, pedir perdão ou dizer amo-te.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2007
O Umbigo e o Cotão
Sem que me seja possível atestar in persona a veracidade de tais postulados, presumo que na Lusitânia distante os férteis telejornais tenham ribombado essa pitoresca curiosidade de noutro lado qualquer que não no nosso umbigo o ano se passe noutro dia que não no nosso inevitável trinta e um de dezembro.
Sim, que no nosso umbiguinho, com ou sem cotão, o ano é de passar a trinta e um.
Mas há umbigos e umbigos. Há o umbigo cristão, que tem dois mil e tal anos, o umbigo judeu que tem cinco mil e muitos, o muçulmano com mil trezentos e picos e o chino com uns quantos. Ainda há o meu, que tem vinte e oito, mas para o caso não interessa muito. O que é certo é que o meu ano novo é a nove de julho e isso não sai no telejornal mas o chinês sai. E eles nem sequer têm dia certo para passar de ano.
Por aqui é uma patetice pegada. Não percebem nada de nada nem como se vê o fogo em condições. O fogo não é como o São João. O povo não se junta em manada compacta em margens de rio algum, nariz empinado no ar e bocas semiabertas a imporem o hálito marítimo enquanto gritam ao puto para estar quieto e não chatear muito, que quero ber o fuogo carago! Nem batem as palmas de cada vez que a ponte se alumeia tuoda.
Aqui é cada um por si. Cada pessoa só pode comprar até trinta quilos de fogo para lançar, o que realmente é pouco. Acho que cada pessoa devia poder comprar quanto quisesse, isso de limitar a uns míseros trinta quilos de fogo é mesmo atitude de governo de ditadura.
Depois de rebentarem o ordenado de um mês nuns fulminantezinhos, vão para o meio da rua e continuam a rebentar. E o tuga que baixe a cabeça se não quiser apanhar com umas faúlhas valentes no manjerico. Então o resultado é este:
hoje foi terça-feira e há uma semana que esta desgraçada cidade parece que está a levar com um valente bombardeamento, de manhã à noite, porque o fogo não pára. Com o óbvio pico na noite passada de sábado para domingo, ok. Mas então funciona assim, há um manuel que se lembra que ainda tem uns morteiritos para rebentar e pronto, põe-se ali no passeio e cá vai disto. Do género, olha não tenho nada que fazer, vou ali mandar uns morteiros e venho já. Uns selvagens.
Na noite de sábado era fogo de artifício por toda a cidade, para onde quer que se olhasse no horizonte, havia fogo de artifício. E eu estava a ver de um vigésimo segundo andar, portanto, via longe. Só mesmo aqui. Cores de todos os feitios, altos, baixos, aqui e ali.
Ao menos Portugal é civilizado. O povo junta-se todo, cola-se todo, pisa-se todo, grita uns com os outros, grita com o marido, grita com a criança, grita com a mulher, com o Rio, com o Menezes, com o padre, com o vizinho e com o outro, depois o fogo vem, grita mais um bocado, espera pelos três últimos morteiros secos, que têm de ser três senão não é fogo de jeito, e depois regressa a casa, a pensar no quanto a última sardinha caiu mal, a pensar no carneiro que se vai comer ao almoço amanhã e a não pensar mais no fogo, que foi sempre bom, mas não tão bom como o daquele ano que esse sim é que foi mesmo uma categoria.
Estes indígenas passam um ano inteiro a pensar no fogo e uma semana a vivê-lo. Uns brutos.
Sim, que no nosso umbiguinho, com ou sem cotão, o ano é de passar a trinta e um.
Mas há umbigos e umbigos. Há o umbigo cristão, que tem dois mil e tal anos, o umbigo judeu que tem cinco mil e muitos, o muçulmano com mil trezentos e picos e o chino com uns quantos. Ainda há o meu, que tem vinte e oito, mas para o caso não interessa muito. O que é certo é que o meu ano novo é a nove de julho e isso não sai no telejornal mas o chinês sai. E eles nem sequer têm dia certo para passar de ano.
Por aqui é uma patetice pegada. Não percebem nada de nada nem como se vê o fogo em condições. O fogo não é como o São João. O povo não se junta em manada compacta em margens de rio algum, nariz empinado no ar e bocas semiabertas a imporem o hálito marítimo enquanto gritam ao puto para estar quieto e não chatear muito, que quero ber o fuogo carago! Nem batem as palmas de cada vez que a ponte se alumeia tuoda.
Aqui é cada um por si. Cada pessoa só pode comprar até trinta quilos de fogo para lançar, o que realmente é pouco. Acho que cada pessoa devia poder comprar quanto quisesse, isso de limitar a uns míseros trinta quilos de fogo é mesmo atitude de governo de ditadura.
Depois de rebentarem o ordenado de um mês nuns fulminantezinhos, vão para o meio da rua e continuam a rebentar. E o tuga que baixe a cabeça se não quiser apanhar com umas faúlhas valentes no manjerico. Então o resultado é este:
hoje foi terça-feira e há uma semana que esta desgraçada cidade parece que está a levar com um valente bombardeamento, de manhã à noite, porque o fogo não pára. Com o óbvio pico na noite passada de sábado para domingo, ok. Mas então funciona assim, há um manuel que se lembra que ainda tem uns morteiritos para rebentar e pronto, põe-se ali no passeio e cá vai disto. Do género, olha não tenho nada que fazer, vou ali mandar uns morteiros e venho já. Uns selvagens.
Na noite de sábado era fogo de artifício por toda a cidade, para onde quer que se olhasse no horizonte, havia fogo de artifício. E eu estava a ver de um vigésimo segundo andar, portanto, via longe. Só mesmo aqui. Cores de todos os feitios, altos, baixos, aqui e ali.
Ao menos Portugal é civilizado. O povo junta-se todo, cola-se todo, pisa-se todo, grita uns com os outros, grita com o marido, grita com a criança, grita com a mulher, com o Rio, com o Menezes, com o padre, com o vizinho e com o outro, depois o fogo vem, grita mais um bocado, espera pelos três últimos morteiros secos, que têm de ser três senão não é fogo de jeito, e depois regressa a casa, a pensar no quanto a última sardinha caiu mal, a pensar no carneiro que se vai comer ao almoço amanhã e a não pensar mais no fogo, que foi sempre bom, mas não tão bom como o daquele ano que esse sim é que foi mesmo uma categoria.
Estes indígenas passam um ano inteiro a pensar no fogo e uma semana a vivê-lo. Uns brutos.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007
O Vento e o Tempo
Todas as manhãs levanto-me e pego na minha bicicleta azul de céu e levo de companhia os sons que me isolam do som cimento e cinzento e me sopram aos ouvidos Luna Luna para que não pare nunca e vôo pelas ruas da cidade cimento e cinzento caíndo-me lágrimas de vento gélido a caminho de mais um só segundo menos de aquecer as mãos no teu cabelo quente de seda e por um momento de nada torno-me senhor do mundo cimento e cinzento morrendo as minhas lágrimas gélidas na tua face quente de seda enquanto dormes serena longe comigo do outro lado do espelho e dos sons onde o céu é mesmo azul e onde há mesmo céu.
domingo, 18 de fevereiro de 2007
Mandarim em Movimento
Não sei bem o que dizer sobre isto. Eu pelo menos choro a rir de cada vez que vejo. A senhora era um personagem, mas muito simpática e empenhada.
Vejam de cima para baixo.
Vejam de cima para baixo.
sábado, 17 de fevereiro de 2007
O Jet e o Lag
Há estudos que comprovam que o jetlag produz efeitos retardados em algumas pessoas, por vezes, com semanas entre a viagem e os aparecimento da referida sintomatologia. Há relatos de pessoas que passam três dias a dormir, outras passam-nos acordadas. Ainda há as que sofrem de alucinações ou até mesmo de surtos psicóticos.
Hoje não sei bem o que me deu a mim, mas alguma coisa foi de certeza.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007
J Hermano Mendes Saraiva in Verano Azul de Pekin
De salientar o tom Hermano-Attenborough. Esforcei-me, a pedido de nenhuma família mas de alguns amigos.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007
Young Men's Christian Association
Apesar de estar tão longe de casa, há coisas que não mudam. E há algumas que são genuínas fatalidades. O crescimento capilar é uma delas. Dispensava bem a fatalidade de cortar o cabelo todos os meses. Porém, se não quiser tornar aos meus saudosos e rebeldes vinte anos, terei de me submeter à ditadura da tesoura.
Já estava a contar com isto.
Cortar o cabelo na China.
Digno representante da nação valente e imortal, entrei no primeiro por que passei. Há muitos cabeleireiros. Barbeiros não vi. O que me deixou com alguma nostalgia do salão do Senhor Mesquita, que já não corta cabelos, mas que deixou a herança do ofício aos seus filhos. Que até cortam o cabelo razoavelmente, entre comentários às saias que passam, actualizações permanentes sobre a vida dos vizinhos e aguerridas discussões às costas do futebol.
Entrei. O salão era grande, talvez pouco maior que a sala da nossa casinha. Tirando a coluna do meio, talvez. É a referência que me surge, pronto.
Mas toda e qualquer semelhança com o que quer que seja que eu considere ou considerasse familiar terminou por aí. Não. O ar efeminado dos cavalheiros que lá trabalham era-me familiar. E por isso ali, naquele contexto, sabendo-me rodeado de jovens alegres, senti-me tranquilo. Normalidade.
E então perguntaram aquilo que perguntam a qualquer pessoa que entra num cabeleireiro chinês: queres o top hairdresser ou o assim-assim? Aqui há sempre um cabeleireiro chefe, que normalmente dá o nome ao salão e que cobra o dobro dos outros. Ora um corte de homem é um corte simples. Se for realmente de homem. Português. Não de alegre jovem chinês. Cortar um dedo de cabelo não pode ser muito complicado. E entre pagar quatro e oito euros, disse logo forty yuans, convicto de que nada poderia correr mal.
Ofereceram-me café - que aqui vem sempre com leite se não se pedir expressamente expresso ou no milk. Please wait some moments. Ok, eu waito. Eram seis e vinte, tinha tempo.
Lavaram-me o cabelo e gostei. É sempre bom ter umas mãos carinhosas a mexer-nos no cabelo, seco ou molhado.
E então lá veio um senhor que só me fazia lembrar o motoqueiro dos Village People. Não era bem o motoqueiro, era o do bigode e dos cabedais. Um pouco barrigudito, mas nada de mais. Fiquei ainda mais descansado, nada poderia correr mal.
O jeito era de mestre. Com a mesma desenvoltura com que Glen Hughes dançava ao som de YMCA, esta encarnação do falecido artista cortava e tirava, pedindo ao rapazito que estava lá de aprendiz de alegre uma tesoura aqui, uma maquineta ali.
O resultado foi um manjerico bebé, algo que vemos por meados de Maio nos hortos, ainda a crescerem as desgraçadas plantas que servirão de traste a milhares e milhares de famílias tugas ciosas das tradições e dos santos soalheiros da broa e da sardinha.
Pouco comovido com a lusa recordação, expliquei ao jovem casapiano, único que pelos vistos lia as letras das músicas da banda ali favorita e assim aprendia o inglês da China, ó dialecto, que pretendia que dos lados do crânio as pilosidades fossem um pouco menos crescidas que no cimo do dito.
O que ele disse ao seu Ritto nunca saberei.
Já estava a contar com isto.
Cortar o cabelo na China.
Digno representante da nação valente e imortal, entrei no primeiro por que passei. Há muitos cabeleireiros. Barbeiros não vi. O que me deixou com alguma nostalgia do salão do Senhor Mesquita, que já não corta cabelos, mas que deixou a herança do ofício aos seus filhos. Que até cortam o cabelo razoavelmente, entre comentários às saias que passam, actualizações permanentes sobre a vida dos vizinhos e aguerridas discussões às costas do futebol.
Entrei. O salão era grande, talvez pouco maior que a sala da nossa casinha. Tirando a coluna do meio, talvez. É a referência que me surge, pronto.
Mas toda e qualquer semelhança com o que quer que seja que eu considere ou considerasse familiar terminou por aí. Não. O ar efeminado dos cavalheiros que lá trabalham era-me familiar. E por isso ali, naquele contexto, sabendo-me rodeado de jovens alegres, senti-me tranquilo. Normalidade.
E então perguntaram aquilo que perguntam a qualquer pessoa que entra num cabeleireiro chinês: queres o top hairdresser ou o assim-assim? Aqui há sempre um cabeleireiro chefe, que normalmente dá o nome ao salão e que cobra o dobro dos outros. Ora um corte de homem é um corte simples. Se for realmente de homem. Português. Não de alegre jovem chinês. Cortar um dedo de cabelo não pode ser muito complicado. E entre pagar quatro e oito euros, disse logo forty yuans, convicto de que nada poderia correr mal.
Ofereceram-me café - que aqui vem sempre com leite se não se pedir expressamente expresso ou no milk. Please wait some moments. Ok, eu waito. Eram seis e vinte, tinha tempo.
Lavaram-me o cabelo e gostei. É sempre bom ter umas mãos carinhosas a mexer-nos no cabelo, seco ou molhado.
E então lá veio um senhor que só me fazia lembrar o motoqueiro dos Village People. Não era bem o motoqueiro, era o do bigode e dos cabedais. Um pouco barrigudito, mas nada de mais. Fiquei ainda mais descansado, nada poderia correr mal.
O jeito era de mestre. Com a mesma desenvoltura com que Glen Hughes dançava ao som de YMCA, esta encarnação do falecido artista cortava e tirava, pedindo ao rapazito que estava lá de aprendiz de alegre uma tesoura aqui, uma maquineta ali.
O resultado foi um manjerico bebé, algo que vemos por meados de Maio nos hortos, ainda a crescerem as desgraçadas plantas que servirão de traste a milhares e milhares de famílias tugas ciosas das tradições e dos santos soalheiros da broa e da sardinha.
Pouco comovido com a lusa recordação, expliquei ao jovem casapiano, único que pelos vistos lia as letras das músicas da banda ali favorita e assim aprendia o inglês da China, ó dialecto, que pretendia que dos lados do crânio as pilosidades fossem um pouco menos crescidas que no cimo do dito.
O que ele disse ao seu Ritto nunca saberei.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007
De Alguma Hospitalidade Chinesa
Às vezes é preciso ter sorte. E nós tivemos sorte. Esta é a Yang, a nossa agente imobiliária. Aqui apenas um gesto de reconhecimento por alguém que, gratuitamente, nos ajudou a encontrar casa, a responder a um senhorio meio trapaceiro, a pôr internet em casa, a comprar telemóveis e respectivos cartões, a encontrar várias escolas de mandarim, a encontrar igreja onde ir à missa - mesmo que, por ignorância, evangélica e por isso inútil, a saber o melhor local para comprar bicicletas, a contratar empregada de limpeza a um euro à hora e muitas outras coisas extremamente úteis que, sem a sua ajuda, não conseguiríamos ou conseguiríamos mal.
A nossa amiga Yang.
Os Sins, os Nãos e a Inutilidade de Tudo Isso
Dizer que sim ou dizer que não é bom porque é uma ocupação mental que vai esbatendo da nossa memória o que realmente importa. Um pouco como o desempregado alcoólico diabético endividado que quando vai ao futebol deixa de ser desempregado alcoólico diabético endividado e passa a ser alguém. Por alguns minutos. Um pobre diabo mas que ali, ao pé dos outros desempregados alcoólicos diabéticos endividados ou não, é um igual aos outros.
É bom para nos fazer esquecer, durante algum tempo, que as PESSOAS querem trabalho, trabalho seguro, bem pago e que lhes permita sentirem-se úteis e com um papel na sociedade; que as PESSOAS querem saúde, com uma boa rede pública de serviços e que não dependa do recheio da carteira; que as PESSOAS querem educação, de qualidade e que lhes permita esperar fundadamente num futuro melhor; que as PESSOAS querem confiar que os outros pagam impostos na razão directa daquilo que auferem e não em razão do maior ou menor poder de fugir ao fisco; que as PESSOAS querem acreditar que se tiverem de resolver um problema em tribunal, terão uma solução justa e rápida; que as PESSOAS querem estar tranquilas em casa quando os seus filhos regressam da escola, porque a polícia tem força e poder efectivos de manter a ordem e a segurança nas ruas; que as PESSOAS querem acreditar que as suas pretensões e os seus pedidos não serão ultrapassados por aqueles que subornarem mais os agentes decisórios do Estado.
Portugal é feito destas PESSOAS. Que de vez em quando, são vítimas das tentativas de encobrimento da profunda e epidémica incompetência dos políticos, que confrontados com a sua própria inépcia, tendem a montar uns circos aqui e ali, para distrair as PESSOAS daquilo que as aflige, de modo a manterem os seus próprios privilégios durante o maior espaço de tempo. E é ver a procissão de palhaços, focas, malabaristas e trapezistas, seguidos de tantos e tantos desempregados alcoólicos diabéticos endividados, pobres diabos, que embarcam nessa loucura colectiva de inventar problemas só para esquecerem os que realmente importam. Palhaços vermelhos, malabaristas rosa, trapezistas laranja, focas azuis, todos juntos de mãos dadas, esquecendo diferenças e supostas bandeiras políticas cheias de moral e de defesa dos coitadinhos, numa completa psicose colectiva, pró menino e prá menina, algodão doce e farturas a fartar.
Porém, o que aconteceu ontem mostra que, desta vez, a procissão foi curta e que antes de deixar o adro já tinha terminado. Se não é o sol, é a chuva. As PESSOAS mostraram a todos que a legalização do aborto significa tanto para aquilo que realmente lhes importa, para aquilo que lhes tira o sono à noite, para aquilo que as preocupa durante o dia, para aquilo que as faz estar mal-dispostas, tristes e deprimidas, que, simplesmente, não foram votar. Uma lição.
Ficam os saltimbancos boquiabertos e balbuciantes, por um pequeno segundo, quando as luzes se apagam e percebem que não tinham público que lhes batesse palmas. E logo após, na mesma lógica neurótica, rebentam em gritos ganhámos e em lágrimas perdemos, como se isso importasse a quem quer que seja, disfarçando a mais crua realidade.
Uma tremenda e enorme charada. Independentemente de ter ganho o sim ou o não. Porque a vida de cada um vai continuar na mesma. O desemprego e o emprego precário; a falta de médicos no interior, a falta de hospitais devidamente equipados, as abútreas filas de espera para consultas e cirurgias e o lento mas imparável aumento do custo desses serviços; o aumento das propinas e do custo dos livros e a constante perda de qualidade dos serviços de educação; a fuga ao fisco dos poderosos e intocáveis; a justiça injusta e lenta; o medo de andar na rua; a corrupção. A vida de cada um vai continuar na mesma. Até mesmo as não-vidas das futuras PESSOAS que continuarão a ser chacinadas nos ventres maternos, seja em clínicas privadas ou em vãos de escada. Tudo na mesma.
Gostaria muito de ter podido votar contra a chacina. Mas nunca tive ilusões acerca do circo, da palhaçada e da inutilidade de tudo isto.
domingo, 11 de fevereiro de 2007
À Mesa com Mao
Hoje fui jantar a um local já nos arredores de Pequim. Um restaurante temático, subordinado ao tema da Revolução Cultural e à figura de Mao Tse-Tung. No final, há sobremesa. O vídeo é clandestino, devido à constante proibição de filmar praticamente em todo o lado, donde a pouca qualidade do mesmo.
Se se experimentar carregar nas fotos, elas surgirão maiores. Recomendo que se dê uma vista de olhos especialmente na que está o palco onde viria mais tarde a decorrer o espectáculo registado no vídeo.
Interessante a China de hoje, que usa o Grande Timoneiro como chamariz de um restaurante, exposto e tratado como uma mera curiosidade histórica. Tão histórica, que agora, em vez da Guarda Vermelha, restam-lhe apenas de guarda-costas a Microsoft e a Lenovo - uma popular marca chinesa de hardware (ver foto).
O comunismo provando a verdade histórica, objectiva e dialéctica da sua consistência e sobretudo, da sua coerência... mais uma vez.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007
A Noite ou Como Passar da China à Europa em Três Segundos Passando por África e pela Casa Pia – nota de rodapé
A verdade é que foram duas noites, sexta e sábado. Na primeira, fomos à descoberta. Ouvimos dizer que a zona de Sanlitun Lu, que é também a das embaixadas, tinha vários bares, alguns razoáveis. Lá fomos rua fora, um frio miserável, a pé, todavia já cansados de pagar um euro, no máximo um euro e meio, a dividir por três ou quatro, sempre que precisamos de usar o táxi.
À parte as inúmeras abordagens de que eu e os outros valorosos representantes da virilidade lusa sofremos por parte de belas jovens de vinte anos, “ladies bar?”, “want chinese lady?”, “body massage?” e por aí dentro, é de referir um certo dejà vú quando se põe pé na Sanlitun, num fim de semana à noite.
À parte as inúmeras abordagens de que eu e os outros valorosos representantes da virilidade lusa sofremos por parte de belas jovens de vinte anos, “ladies bar?”, “want chinese lady?”, “body massage?” e por aí dentro, é de referir um certo dejà vú quando se põe pé na Sanlitun, num fim de semana à noite.
A versão pequinesa de Albufeira não é muito original. Também há vendedores ambulantes de comida, mas não há rulotes, só há carrinhos puxados por bicicleta; não há castanha assada, mas há batata doce, assada sobre brasas, ali mesmo, na rua. Por vezes encontram-se grupos de homens, encostados a uma parede, em plena calçada, a assar em brasas também feitas ali mesmo em pequenos recipientes de metal umas espetadinhas pequeninas de indecifrável carne, enquanto jogam cartas, fumam uns cigarros, destes daqui que custam um euro o maço mas que devem matar duas vezes mais depressa que os nossos, bebem uma zurrapa qualquer e riem.
Cada bar e cada discoteca têm dois ou três porteiros/angariadores de clientes, que quase nos impedem de continuar, atirando a palavra inglesa que aparentemente todos os chineses conhecem bem: cheap, cheap!, enquanto saltam de um lado para o outro tentando atrair a nossa atenção. Há vendedores de tabaco e muitos pedintes maltrapilhos. Alguns, crianças muito pequenas. A animação fica completa com os remates de luz e cor estridentes que cada casa expele portas e janelas fora.
Entrar num bar puramente chinês é uma experiência nova. Não que seja justo tomar o todo pela parte, mas a amostra foi ilustrativa. Há sempre meninas a cantar, normalmente duas, às vezes karaoke, às vezes não. E normalmente há sempre um organista mal amanhado, com ar de tipo que foi apanhado à pressa no meio da rua pra ir tocar umas cantiguitas. As músicas são daquelas à Vítor Espadinha, muito românticas, cantadas com muita expressividade facial, como se em vez de cantar o amor se estivesse a carpir o luto. O que talvez sobressaia mais são as cores e a decoração. Suponho que o Quentin Tarantino tenha vindo à China uma ou duas vezes, porque, apesar do enredo do Kill Bill ter ligações ao Japão, aqui, as semelhanças com a coincidência são mesmo realidade. Os círculos com as cores do arco-íris no cenário do palco, conjugados com os finíssimos lasers que dançam freneticamente não ao ritmo de sim eu sei que tudo são recordações e que mudam de cor de sílaba a sílaba, deixam-nos a esfregar os olhos, averiguando se a Amália é Rodrigues ou se é Thurman.
Enquanto uma canta, a outra espera ao lado, em silêncio. Simula um bambolear forçado, mas sem esconder a cara de frete e de desdém. E depois trocam. Em tudo.
Como tudo aquilo farta rapidamente, saímos não mais devagar. Sem conhecermos, vagueámos e demos por nós num beco, apinhado de pessoas, caracterizadas pelos mesmos dois traços: ocidentais e miúdos. Fomos parar ao bar da moda para todo o filho de diplomata e afins, o Shooters. Fez-me lembrar os bares manhosos da Ribeira. Pequeno, a abarrotar de gente, com bebidas baratas baptizadas com os nomes mais estranhos. Música da moda para abanar o rabo, da nossa moda, de há um ou dois anos. Pedimos um shot, pedimos uma TsingTao, que já agora é uma cerveja muito interessante. E pusemo-nos a observar.
Cada bar e cada discoteca têm dois ou três porteiros/angariadores de clientes, que quase nos impedem de continuar, atirando a palavra inglesa que aparentemente todos os chineses conhecem bem: cheap, cheap!, enquanto saltam de um lado para o outro tentando atrair a nossa atenção. Há vendedores de tabaco e muitos pedintes maltrapilhos. Alguns, crianças muito pequenas. A animação fica completa com os remates de luz e cor estridentes que cada casa expele portas e janelas fora.
Entrar num bar puramente chinês é uma experiência nova. Não que seja justo tomar o todo pela parte, mas a amostra foi ilustrativa. Há sempre meninas a cantar, normalmente duas, às vezes karaoke, às vezes não. E normalmente há sempre um organista mal amanhado, com ar de tipo que foi apanhado à pressa no meio da rua pra ir tocar umas cantiguitas. As músicas são daquelas à Vítor Espadinha, muito românticas, cantadas com muita expressividade facial, como se em vez de cantar o amor se estivesse a carpir o luto. O que talvez sobressaia mais são as cores e a decoração. Suponho que o Quentin Tarantino tenha vindo à China uma ou duas vezes, porque, apesar do enredo do Kill Bill ter ligações ao Japão, aqui, as semelhanças com a coincidência são mesmo realidade. Os círculos com as cores do arco-íris no cenário do palco, conjugados com os finíssimos lasers que dançam freneticamente não ao ritmo de sim eu sei que tudo são recordações e que mudam de cor de sílaba a sílaba, deixam-nos a esfregar os olhos, averiguando se a Amália é Rodrigues ou se é Thurman.
Enquanto uma canta, a outra espera ao lado, em silêncio. Simula um bambolear forçado, mas sem esconder a cara de frete e de desdém. E depois trocam. Em tudo.
Como tudo aquilo farta rapidamente, saímos não mais devagar. Sem conhecermos, vagueámos e demos por nós num beco, apinhado de pessoas, caracterizadas pelos mesmos dois traços: ocidentais e miúdos. Fomos parar ao bar da moda para todo o filho de diplomata e afins, o Shooters. Fez-me lembrar os bares manhosos da Ribeira. Pequeno, a abarrotar de gente, com bebidas baratas baptizadas com os nomes mais estranhos. Música da moda para abanar o rabo, da nossa moda, de há um ou dois anos. Pedimos um shot, pedimos uma TsingTao, que já agora é uma cerveja muito interessante. E pusemo-nos a observar.
Só aí percebi que não era um sonho, que não tinha regressado ao meu Tugalzinho pequenino da minha gente pequenina, do bacalhau e do Figo, do fado e do carago de que tenho tantas saudades e que ainda estava no outro lado do mundo. Porque aqui, as coisas são mesmo diferentes, seja em grandes pormenores ou em pequenos. E vi miúdos de catorze, quinze, dezassete anos no máximo, pretos, brancos, amarelos, escurinhos e assim-assim a dançarem todos juntos, parecendo um cardume, para onde um virava viravam todos, esforçando-se por terem em contacto uns com os outros a maior área corporal que fosse possível sem cair. A promiscuidade era viscosa. Fixei um rapazinho alto e magro com ar de árabe, que dançava com uma mocita que não podia ser mais nórdica. As mãos dele estavam coladas ao traseiro da miúda, ostensivamente abertas, enquanto passeava o nariz (só vi o nariz, mas até pode ter sido mais) pela cara, pelo pescoço, pelos ombros dela. Volta e meia davam um beijo, mais lambido que apaixonado. Às páginas tantas, cansa-se, larga-a e agarra outra, repetindo a façanha com a mesma aplicação. A questão é que era assim por todo o lado. Devia tratar-se de um grave caso colectivo de carências afectivas. É que não interessava se era gordo/a ou magro/a, bonito/a ou feio/a, alto/a ou baixo/a, rapaz ou rapariga, porque havia disso tudo. O que interessava era estar agarrado a outra pessoa, encostar o corpo todo a alguém e ter alguém atrás encostado a si. Impressionante.
Já meio enojado com tanta secreção e borbulhame metido a adulto, virei-me de costas e aportei ao balcão, onde esperava ver caras mais saudáveis. Mas não. O que vi pôs-me tão fora de mim que me apeteceu voltar ao mar de saliva e de suor lactífero... Um cavalheiro, talvez dos seus cinquenta anos, copo numa mão, a outra no bolso, virado para os putos, a medi-los de cima a baixo, com ar de carneiro mal morto. A babar-se todo, basicamente. Confundido, pois por momentos parecia que afinal tinha mesmo voltado a Portugal, tentei esquecer aquilo tudo, conseguir respirar à tona de tanta nhanha junta e, assim, procurei refúgio em mais uma TsingTao. Bebesse eu mais duas ou três e talvez tivesse enfiado um daqueles bancos altos na cabeça daquele bicho nojento, que não parava de olhar e, por vezes, cúmulo do asco, de fechar os olhos e respirar fundo como que a dizer a si próprio tem calma, tem calma... Depois o António decidiu meter conversa com o miserável, tipo deixa-me dar tanga ao pedófilo. E lá deu, tirando fotografias com o espécimen, abraçado, a rirem-se, um do outro e o outro não sei de quê, talvez de si mesmo e da sua desgraçada sina.
Na noite seguinte, fomos a uma festa promovida pela Embaixada de Angola numa discoteca chique da cidade. Bar aberto. Vimos Bonga projectado num ecrã e umas senhoras brancas e loiras dos seus cinquenta anos, vestidas de branco, com saias curtas e bem travadas a mostrarem que não há magreza que resista ao encanto da meia idade, dançando energicamente kizomba com os seus amigos africanos. Quando chegou a parte da tarrachinha, achámos que era melhor voltar ao frio da noite. O que fizemos. Não sem antes sorrir forçadamente para um senhor de idade muito atencioso para com as nossas colegas, que dançou à frente delas durante alguns minutos, qual pavão no cio. Mas não era pavão. É Embaixador.
terça-feira, 6 de fevereiro de 2007
Coordenadas da Base
Tower B , Room No. 1203
Yuan Yang Xin Gan Xian San Yuan Dong Qiao Xia Guang Li 66 Hao Chaoyang DistrictBeijing 100027
P. R. China
________
http://maps.google.com/maps?f=q&hl=en&ie=UTF8&t=h&om=1&z=16&ll=39.957139,116.454885&spn=0.006892,0.014462________
39º57'21.95"N 116º27'14.34E
P. R. China
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http://maps.google.com/maps?f=q&hl=en&ie=UTF8&t=h&om=1&z=16&ll=39.957139,116.454885&spn=0.006892,0.014462________
39º57'21.95"N 116º27'14.34E
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007
A Armada Portuguesa e a Banheira Dezoito.
Nunca me passou pela cabeça que, feitos tantos quilómetros, acabasse por ter como ponto de referência uma avenida que, na sua pronúncia correcta, tem muito que ver com o meu Portinho querido do coração. Donsanhuan diz-se com a pronúncia castelhana, o que faz lembrar algo como Dom São João. Bonito, não é?
Ora, isto para dizer que finalmente estamos instalados, todos na Torre B do Ocean Express Compound, na primeira à direita depois do cruzamento da Dongsanhuan com a Dongzhimenwai Xijie, para quem vai de Sul para Norte. Olhando para o mapa de Pequim, fica em cima, do lado direito, logo a seguir ao Hilton e logo antes do China International Exhibition Centre. Trata-se de um conjunto de cinco torres, estilo condomínio fechado mas sem estar limitado por muros ou grades. Mas com porteiros simpáticos que havemos de pôr a dizer-nos Olá em vez de Ni Háo.
Todos, os oito. Três no décimo segundo três, duas no décimo sétimo sete e outros três no vigésimo segundo nove. Os Nunos e o David, a Susana e a Marta, a Cláudia, a Alexandra e o António. Todos entre os vinte e três e os vinte e oito, todos nómadas forçados neste vestíbulo peçonhento do meu suspirado Gobi. Tudo bons rapazes e boas raparigas. Guimarães, Barcelos, Porto, Viseu, Lisboa, Castro Verde e Vila Nova de Milfontes. Direito, Gestão, Turismo, Jornalismo, Ambiente, Relações Internacionais, Marketing. Eclético q.b. .
O nosso apartamento é um T3, com cento e sessenta metros quadrados. Fiquei com um dos dois quartos mais pequenos. Os apartamentos chineses não diferem muito dos nossos. Porém, todos têm ar condicionado e no WC da suite uma banheira e um poliban. Nenhum tem forno porque na China não se assa nada.
Ora, isto para dizer que finalmente estamos instalados, todos na Torre B do Ocean Express Compound, na primeira à direita depois do cruzamento da Dongsanhuan com a Dongzhimenwai Xijie, para quem vai de Sul para Norte. Olhando para o mapa de Pequim, fica em cima, do lado direito, logo a seguir ao Hilton e logo antes do China International Exhibition Centre. Trata-se de um conjunto de cinco torres, estilo condomínio fechado mas sem estar limitado por muros ou grades. Mas com porteiros simpáticos que havemos de pôr a dizer-nos Olá em vez de Ni Háo.
Todos, os oito. Três no décimo segundo três, duas no décimo sétimo sete e outros três no vigésimo segundo nove. Os Nunos e o David, a Susana e a Marta, a Cláudia, a Alexandra e o António. Todos entre os vinte e três e os vinte e oito, todos nómadas forçados neste vestíbulo peçonhento do meu suspirado Gobi. Tudo bons rapazes e boas raparigas. Guimarães, Barcelos, Porto, Viseu, Lisboa, Castro Verde e Vila Nova de Milfontes. Direito, Gestão, Turismo, Jornalismo, Ambiente, Relações Internacionais, Marketing. Eclético q.b. .
O nosso apartamento é um T3, com cento e sessenta metros quadrados. Fiquei com um dos dois quartos mais pequenos. Os apartamentos chineses não diferem muito dos nossos. Porém, todos têm ar condicionado e no WC da suite uma banheira e um poliban. Nenhum tem forno porque na China não se assa nada.
O senhorio está a demorar a colocar a mobília, coisa que faz parte do contrato que celebrámos e devido à qual não pudemos escolher nada. Temos as camas, as mesinhas de cabeceira, roupeiros ridiculamente pequenos, uma mesa e quatro cadeiras. Isto aliás tem sido um pagode. O senhorio entra na casa quando quer e bem lhe apetece para colocar mais uma coisita hoje, mais uma coisita amanhã. A última foram as cortinas do quarto do David, com ele lá dentro a dormir. Sim, nove da manhã de domingo e o David acorda com um ruído. Abre os olhos, vê duas pessoas no quarto que não deviam estar ali, a porem cortinas. Porém, o David é o David. Virou-se para o lado e continuou a dormir, tranquilamente. Só mesmo um alentejano. Se fosse comigo acho que tinha atirado com a mesinha de cabeceira a um deles.
Nós já vamos encolhendo os ombros. O ambiente não é montypythiano, mas parece-me que no fundo no fundo, estamos a esforçar-nos para isso, numa lógica distorcida de procura de sanidade. Enquanto não passearem cavalos brancos na sala, o chão não for aos quadrados e as cortinas não aparecerem de veludo vermelho, tudo bem. Mas já vamos tendo uma banheira que está encostada a uma parede... de vidro, do chão ao tecto, bem frente a outra torre. Obrigámos o senhorio a colocar uma cortina. Sem mais comentários.
O meu colchão faz lembrar um outro que a mãe da minha mãe tinha em casa dela e que era feito de palha. É extremamente duro, mas tenho dormido bem. Esta noite deixei o humidificador ligado para ver se acordava com a garganta menos áspera. Disse bem, humidificador. É que o deserto está a menos de cem quilómetros da nossa casa e a humidade nunca passa dos quinze, vinte por cento... Mas nada feito. Talvez tenha de deixar mais tempo o raio da maquineta a bufar.
Dizem que hoje vamos ter a máquina de lavar roupa e a TV. A máquina por acaso preocupa-me, porque TV só a oficial chinesa. Que por acaso tem um canal em inglês, mas continua a ser a oficial chinesa. Outro dia vi uma reportagem de que Orwell gostaria, referindo a visita do Presidente chinês ao Sudão e exaltando o aprofundamento das relações da China com aquele país, em que o Darfur não foi referido nem a título de destino turístico. E hoje vou ao Banco da China carregar os cartões da electricidade e do gás, que depois são introduzidos em ranhuras existentes nos respectivos contadores. Interessante, não é?
Todas as noites espero que seja mesmo realmente tarde para me deitar, de modo a estar tão cheio de sono que não seja possível estar demasiado tempo acordado, sobre o meu lado direito, de olhos abertos, tentando recordar na escuridão familiar da noite aquilo que a claridade turva do dia não me permite.
O meu colchão faz lembrar um outro que a mãe da minha mãe tinha em casa dela e que era feito de palha. É extremamente duro, mas tenho dormido bem. Esta noite deixei o humidificador ligado para ver se acordava com a garganta menos áspera. Disse bem, humidificador. É que o deserto está a menos de cem quilómetros da nossa casa e a humidade nunca passa dos quinze, vinte por cento... Mas nada feito. Talvez tenha de deixar mais tempo o raio da maquineta a bufar.
Dizem que hoje vamos ter a máquina de lavar roupa e a TV. A máquina por acaso preocupa-me, porque TV só a oficial chinesa. Que por acaso tem um canal em inglês, mas continua a ser a oficial chinesa. Outro dia vi uma reportagem de que Orwell gostaria, referindo a visita do Presidente chinês ao Sudão e exaltando o aprofundamento das relações da China com aquele país, em que o Darfur não foi referido nem a título de destino turístico. E hoje vou ao Banco da China carregar os cartões da electricidade e do gás, que depois são introduzidos em ranhuras existentes nos respectivos contadores. Interessante, não é?
Todas as noites espero que seja mesmo realmente tarde para me deitar, de modo a estar tão cheio de sono que não seja possível estar demasiado tempo acordado, sobre o meu lado direito, de olhos abertos, tentando recordar na escuridão familiar da noite aquilo que a claridade turva do dia não me permite.
Static X
Uma noite destas, ainda estávamos no Zhaolong, saímos da casa dos nossos colegas e dirigimo-nos para a rua, calmamente, em busca dos nossos beliches. Foi muito giro, dez ou doze homens aos berros, munidos de bastões, tipo taco de basebol curto, a correrem de um lado para o outro, perseguindo alguém entre as torres do complexo. Alguns vestiam uniforme de segurança privado. Era meia noite e não se via vivalma na rua. Passaram várias vezes por nós, que mantivemos o rumo, impassíveis, dando ar de ocidentais importantes, não fosse a coisa dar para o torto.
Mas mais piada teve logo a seguir, dois minutos depois, chamar um táxi, o homem estar distraído, só quase em cima de nós se aperceber disso, fazer uma travagem à Colin McRae, o tipo que vinha atrás dele fazer uma outra travagem ainda mais forte para não bater, sair disparado do carro, abrir a porta do taxista e só não o partir todo à pancada provavelmente porque o homem era já um velhinho indefeso. Ainda estivemos uns bons três minutos à espera que ele acabasse de invectivar o pobre velhote que nitidamente estava a perceber aquilo tanto como nós.
Pequim é uma cidade carregada de electricidade estática. Mas uma coisa nunca vista. Os choques vêm de todo o lado e constantemente, nos carros, em casa, a despir o próprio casaco e até num cumprimento de mão. É vulgar ver uma pequena faísca azul. Acho que naquela noite os níveis estavam anormalmente altos. E foi uma estreia, alguém nervoso no trânsito.
Mas mais piada teve logo a seguir, dois minutos depois, chamar um táxi, o homem estar distraído, só quase em cima de nós se aperceber disso, fazer uma travagem à Colin McRae, o tipo que vinha atrás dele fazer uma outra travagem ainda mais forte para não bater, sair disparado do carro, abrir a porta do taxista e só não o partir todo à pancada provavelmente porque o homem era já um velhinho indefeso. Ainda estivemos uns bons três minutos à espera que ele acabasse de invectivar o pobre velhote que nitidamente estava a perceber aquilo tanto como nós.
Pequim é uma cidade carregada de electricidade estática. Mas uma coisa nunca vista. Os choques vêm de todo o lado e constantemente, nos carros, em casa, a despir o próprio casaco e até num cumprimento de mão. É vulgar ver uma pequena faísca azul. Acho que naquela noite os níveis estavam anormalmente altos. E foi uma estreia, alguém nervoso no trânsito.
sábado, 3 de fevereiro de 2007
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007
Mao, Sócrates e Eu
Vi o José Sócrates por duas vezes.
Uma, quando fui à Assembleia da República para ter uma reunião com um grupo parlamentar qualquer. A outra, quando a descer a Rua de S. Bento à frente de uma qualquer manifestação, ele passou por nós a subir, possivelmente em direcção à casa cor de rosa no cimo da colina. Da primeira vez, foi num elevador, no tempo do Durão. Eu subia e ele entrou a meio da ascensão. Subimos dois andares ou três só os dois e os botões naquele silêncio constrangido do costume. Saiu antes de mim, não sem lançar um crítico “boa tarde”, pelos vistos incomodado pela falta de educação portuense. Como se eu cumprimentasse quem não conheço. Talvez ele, que é de Bragança, tenha sido criado a dizer bom dia e boa tarde na rua sempre que alguém passa por ele. Mas vendo bem não é isso. Não pode ser. Quando passou por nós na manif não deu boa tarde a ninguém. Devia ter-me acercado dele e buzinar-lhe com o megafone “BOA TARDE!”...
Anteontem vi-o outra vez.
Tivemos de nos levantar muito cedo. Os chineses não admitem atrasos e a cerimónia estava marcada para as nove e meia. Da pousada ao CCPTI, ou seja, ao Conselho para a Promoção do Comércio Internacional da China, ainda são uns dez quilómetros, o que significa uns quarenta minutos de táxi às oito e meia da manhã.
Era o nosso último despertar no Zhaolong e, por isso, estávamos felizes.
Surpreendido, verifiquei que a direcção tomada pelo taxista anunciava que poderíamos passar por Tiananmen, local que ainda residia apenas nas minhas vagas lembranças de algumas reportagens clandestinas nos idos de oitenta e nove. Estava desterrado há oito dias e ainda não tinha visto o que justifica vir a esta terra.
E assim foi. O percurso é monótono, descer a Dongsanhuan, virar à direita uns quilómetros depois e seguir mais alguns. Durante todo este caminho, o esplendor da nova China. Arranha-céus futuristas, larguíssimas avenidas novas. Até que passamos por Tiananmen e pela Cidade Proibida. Praça à esquerda, Cidade à direita. Claro, uma praça é uma praça. Faz lembrar Fátima, de tão ampla e aberta. A ventania é pré-ciclónica, o frio entra violento em cada poro da pele, mal se conseguindo manter os olhos abertos. Não é possível estar sem luvas. As mãos, mesmo que estejam quentes, gelam em trinta segundos. É assim em todo o lado, mas como Tiananmen fica num ponto um pouco mais alto que o resto da planíssima cidade, sente-se ainda mais. Nas arestas do quadrado, a Cidade, um edifício do Estado, imponente, com uma gigantesca estrela vermelha pendurada em ângulo recto do vértice superior da cornija e ornamentada por baixo com uma palma de louros verdes. Lá ao fundo, do outro lado do Tejo, outro edifício semelhante a este, onde consigo vislumbrar outra estrela entre as sete bandeiras da China de cinco por três metros que, alinhadas milimetricamente, dançam furiosamente no centro da praça. Uma constelação interessante, mas cuja pretensão a um lugar no zodíaco político do mundo me parece seguramente pouco meritória.
“A Cidade Proíbida ocupa uma área de 72 hectares em pleno centro de Pequim (um rectângulo com 760 metros, de Este para Oeste e 960 metros, de Norte para Sul), rodeados por um muro com 10 metros de altura e um fosso de 52 metros de largura, numa extensão de 3800 metros. Dispõe de quatro torres de vigia em cada canto e de quatro portas de entrada, igualmente, dotadas de torres: a Porta do Meridiano (a Sul, no eixo central da cidade), a Porta da Vontade Divina (a Norte) e as portas Floridas de Este e de Oeste. Os antigos imperadores acreditavam viver no centro do Universo e que a linha do meridiano passava pelo meio da Cidade Proíbida. Ao longo de praticamente cinco séculos (491 anos), viveram na Cidade Proíbida um total de 24 imperadores - 14 da Dinastia Ming e 10 da Dinastia Qing -, com as suas cortes de eunucos, esposas e concubinas.” (in http://janelanaweb.com/viagens/pequim.html)
Anteontem vi-o outra vez.
Tivemos de nos levantar muito cedo. Os chineses não admitem atrasos e a cerimónia estava marcada para as nove e meia. Da pousada ao CCPTI, ou seja, ao Conselho para a Promoção do Comércio Internacional da China, ainda são uns dez quilómetros, o que significa uns quarenta minutos de táxi às oito e meia da manhã.
Era o nosso último despertar no Zhaolong e, por isso, estávamos felizes.
Surpreendido, verifiquei que a direcção tomada pelo taxista anunciava que poderíamos passar por Tiananmen, local que ainda residia apenas nas minhas vagas lembranças de algumas reportagens clandestinas nos idos de oitenta e nove. Estava desterrado há oito dias e ainda não tinha visto o que justifica vir a esta terra.
E assim foi. O percurso é monótono, descer a Dongsanhuan, virar à direita uns quilómetros depois e seguir mais alguns. Durante todo este caminho, o esplendor da nova China. Arranha-céus futuristas, larguíssimas avenidas novas. Até que passamos por Tiananmen e pela Cidade Proibida. Praça à esquerda, Cidade à direita. Claro, uma praça é uma praça. Faz lembrar Fátima, de tão ampla e aberta. A ventania é pré-ciclónica, o frio entra violento em cada poro da pele, mal se conseguindo manter os olhos abertos. Não é possível estar sem luvas. As mãos, mesmo que estejam quentes, gelam em trinta segundos. É assim em todo o lado, mas como Tiananmen fica num ponto um pouco mais alto que o resto da planíssima cidade, sente-se ainda mais. Nas arestas do quadrado, a Cidade, um edifício do Estado, imponente, com uma gigantesca estrela vermelha pendurada em ângulo recto do vértice superior da cornija e ornamentada por baixo com uma palma de louros verdes. Lá ao fundo, do outro lado do Tejo, outro edifício semelhante a este, onde consigo vislumbrar outra estrela entre as sete bandeiras da China de cinco por três metros que, alinhadas milimetricamente, dançam furiosamente no centro da praça. Uma constelação interessante, mas cuja pretensão a um lugar no zodíaco político do mundo me parece seguramente pouco meritória.
“A Cidade Proíbida ocupa uma área de 72 hectares em pleno centro de Pequim (um rectângulo com 760 metros, de Este para Oeste e 960 metros, de Norte para Sul), rodeados por um muro com 10 metros de altura e um fosso de 52 metros de largura, numa extensão de 3800 metros. Dispõe de quatro torres de vigia em cada canto e de quatro portas de entrada, igualmente, dotadas de torres: a Porta do Meridiano (a Sul, no eixo central da cidade), a Porta da Vontade Divina (a Norte) e as portas Floridas de Este e de Oeste. Os antigos imperadores acreditavam viver no centro do Universo e que a linha do meridiano passava pelo meio da Cidade Proíbida. Ao longo de praticamente cinco séculos (491 anos), viveram na Cidade Proíbida um total de 24 imperadores - 14 da Dinastia Ming e 10 da Dinastia Qing -, com as suas cortes de eunucos, esposas e concubinas.” (in http://janelanaweb.com/viagens/pequim.html)
É tudo verdade. A única coisa que o esforçado autor desta descrição se esqueceu foi de mencionar o retrato tremendo de Mao Tse-Tung que pontifica por cima da porta principal do complexo, acolhendo no terno regaço do seu olhar paternal todos aqueles que pisam Tiananmen. E reparei que ele também olhou para mim. Procurando ser gentil, esforcei-me por me sentir mimado e protegido. Porém não. Sempre tive issues com as figuras paternais que foram surgindo na minha vida. Mao, querido, tentou, mas também falhou. Procurei fintá-lo, movendo rapidamente a cabeça para um lado e para o outro, para ver da sua rapidez. Mais uma vez. Mas esta Mona Lisa é tão boa como a de Avintes e nada houve a fazer.
Satisfeito por ter juntado mais um cromo à minha colecção de pessoas importantes já vistas, segui caminho para o dito CCPIT.
Quando entrei na ampla sala de congressos, a confusão era muita. Toda a gente de pé, conversando aos pares e aos trios, excepto alguns chineses que, por sono ou falta de companhia, já se tinham sentado, apoiando os cotovelos nas longas mesas dispostas em filas horizontais, frente ao palco onde já dominava pronta a mesa dos outros importantes.
Olhei melhor e comecei a conhecer caras e a surpreender-me com quase todas. Pois uma coisa é ver na televisão ou em fotos de jornal; outra é ao vivo. António Mota da Mota-Engil, Henrique Granadeiro da PT, Melo Ribeiro da Siemens, Mira Amaral do BPI, António Amorim da Corticeira, enfim. Senti-me bem. E sentei-me melhor, pois não tinha companhia. Ladeado por um chinês e por uma chinesa, uma vez que estava ali a representar uma firma chinesa. O acontecimento de terem um ocidental sentado ali perturbou muito os meus companheiros de circunstância. Começaram cada um a cochichar com os que estavam a seu lado, até que o chinês ganhou coragem e, solene, enfiou-me um cartão de visita debaixo dos olhos. Agradeci e como na altura ainda não tinha cartões, só me restou oferecer-lhe uma brochura da empresa, em cujo verso havia diligentemente escrito à mão o meu próprio nome e o meu contacto. Sempre entregando e recebendo com as duas mãos. E sempre colocando os cartões recebidos em cima da mesa, bem à vista, não no bolso.
O pobre homem, talvez nos seus quarenta anos, apresentou-se e desatou a falar da função que desempenhava. Ora, o inglês aqui não é inglês. Certamente deve ser alguma coisa, mas inglês não é. Li o cartão e percebi que era o director de uma agência estatal para a promoção económica de uma província no sul da China. O esboço de conversa prosseguiu, até que começou o espectáculo.
Tal como no circo, também havia um anunciante. E então lá chegaram. Os palhaços, as focas, os trapezistas e os malabaristas.
O melhor de tudo foi sem dúvida a fantástica prestação da tradutora portuguesa, uma professora auxiliar do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, especialista em cultura chinesa. Sim, foi formidável. Porque o resto, desde o inimputável ministro da Economia a dizer que Portugal é bom para investir porque os salários que se pagam lá são baixos, até ao chefe da banda a demorar talvez vinte segundos para fazer uma linha recta de cinco metros, desde a cadeira até ao palanque, sempre com aquele insuportável ar afectado de clister perpétuo, foi uma cena de bradar aos céus e de invocar D. Afonso Henriques.
Depois da intervenção do vosso Primeiro-Ministro, seguiu-se um momento de assinatura de protocolos entre empresas. Não era ainda altura para sair da mesa, mas há ocasiões em que um homem ou é um homem ou é um rato. E continuar sentado depois do chinês me dizer, bem claro e caído do céu, you are very handsome, meus amigos, um homem é um homem. Julguei ouvir mal, julguei que era da figadeira que me tinha dado depois de ver e ouvir o do elevador. Perguntei, ora diz lá outra vez? You are very handsome! A minha expressão deve ter sido tão simpática que o desafortunado cavalheiro ainda confirmou a frase com o outro que o tinha acompanhado e que, reparava agora eu, não devia ter mais que quinze anos. Tudo aquilo começou a parecer-me estranho demais e, antes que fosse tarde, levantei-me e escapei.
Soube mais tarde que a expressão é comum e constitui apenas uma mera cortesia, desprovida de qualquer conotação dissimulada. Devia ter adivinhado. Aqui, para dizer “então, tudo bem?” diz-se “então, trouxeste comida?”. E depois riem-se. Tal e qual.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007
NCO
A par de outros cento e noventa jovens licenciados portugueses, fui colocado num país e numa organização sem ter possibilidade de manifestar preferência. Em bom rigor, eu pedi ao ICEP para ser colocado na Europa, para estar mais perto de casa. Eles ainda assentiram “oficiosamente”, mostrando grande sensibilidade para o facto de ser casado há três meses.
Bom, o resultado dessa sensibilidade é o que se vê. E a verdade é que Portugal continua a ser Portugal, até onde achamos que determinadas características do nosso povo não deveriam sobressair. Se eu tivesse chorado baba e ranho como alguns colegas que, simplesmente, não gostaram do país e/ou da empresa em que foram colocados, sem qualquer razão séria e excepcional, talvez me tivessem posto na Europa, pois àqueles mudaram o estágio. Mas não o fiz, primeiro porque assumo as coisas como elas são. Segundo, porque levei a sério aquela aparência toda institucional e de grande rectidão que os funcionários públicos do Instituto fazem pompa em apresentar. “Não há troca de estágios!” Sim senhor. Quem não chora não mama e no ICEP também é assim. Quem é sério é na realidade um grande parvo. Ponto.
O tom azedo expressa somente o que sinto, mas não traduz ainda resignação com a coisa.
Posto isto, fui colocado numa firma chinesa de advocacia chamada Capital Associates. Estranhei até ao dia em que pus pé na dita firma e fui esclarecido, mal e tarde, pelos responsáveis da firma, porque razão é que eles haviam de querer um advogado português.
Bom. Cheguei, nove da manhã em ponto. Sentam-me numa cadeirinha dentro de um gabinete e dizem-me para esperar pela chefe. A chefe pelos vistos entra uma hora depois dos outros. Dez.
Hi, my name is Amy (eles adoptam nomes americanos para facilitar)
Hello
So... Are you American?
No... I’m Portuguese!...
....
You know, Portuguese... Pu Tau Ya!
Oooh, Pu Tau Ya!! Ok, ok...
And for how long is you go to stay? Six months, right?
For nine months...
Oh, yeah, right...
Um bom começo, não há dúvida. Quando ouço os outros colegas falarem de almoços de recepção oficial que as suas empresas fazem em sua honra, encolho os ombros. Tive direito a um ten yuan almoço, num tabuleirinho e trazido até ao meu gabinete. Bem bom. Para quem já andou quase a mandar-se da janela abaixo por causa deste disparate pegado que foi eu ter vindo para aqui, isto foi um tónico. Aquilo que justificou abandonar a minha alma metade, deixar tudo e todos, para arriscar uma vida melhor para mim e para os meus, não sabe de onde eu venho nem por quanto tempo fico. Muito bom. Só me motivou, em abono da verdade. Pois que serei eu que construirei a(s) oportunidade(s). Não é agora, agora que o pior já está feito, que vou baixar os braços.
Afinal, a Capital Associates não mais é que o braço jurídico da NCO, que se complementa com o braço contabilístico da NCO-A(ccounting). Mas trabalho para a NCO Consulting, consultora que essencialmente apoia empresas estrangeiras que queiram implantar-se na China, seja de que forma for (excepto exportações). Trata apenas das questões de cariz burocrático, ao nível da emissão de licenças e autorizações para o início e manutenção do exercício da actividade. “Apenas”, não. Na China, tudo o que é administrativo e da coutada burocrática pode ser muito demorado. Pelos vistos, estes tipos têm uma qualquer ligação privilegiada com alguns sectores da Administração Chinesa e é nisso que baseiam a sua actividade.
Então, aqui estou eu na China, a rever e corrigir textos traduzidos do mandarim para o inglês macarrónico deles e a representar a firma junto de estrangeiros. Não estou totalmente insatisfeito com as tarefas em si, até porque espero em breve começar a ter contacto com a legislação chinesa propriamente dita. O problema é que não me dão praticamente nada para fazer. Ou então quando me dão, é um textito de duas ou três páginas para cuja correcção me dão o resto do dia, quando eu despacho aquilo em meia hora...
Mas não tem sido sempre assim. Esta semana até foi animada. Já tenho cartões, o que por aqui tem uma importância fundamental. Aqui, quem não tem cartão não só não entra, como simplesmente não é.
Bom, o resultado dessa sensibilidade é o que se vê. E a verdade é que Portugal continua a ser Portugal, até onde achamos que determinadas características do nosso povo não deveriam sobressair. Se eu tivesse chorado baba e ranho como alguns colegas que, simplesmente, não gostaram do país e/ou da empresa em que foram colocados, sem qualquer razão séria e excepcional, talvez me tivessem posto na Europa, pois àqueles mudaram o estágio. Mas não o fiz, primeiro porque assumo as coisas como elas são. Segundo, porque levei a sério aquela aparência toda institucional e de grande rectidão que os funcionários públicos do Instituto fazem pompa em apresentar. “Não há troca de estágios!” Sim senhor. Quem não chora não mama e no ICEP também é assim. Quem é sério é na realidade um grande parvo. Ponto.
O tom azedo expressa somente o que sinto, mas não traduz ainda resignação com a coisa.
Posto isto, fui colocado numa firma chinesa de advocacia chamada Capital Associates. Estranhei até ao dia em que pus pé na dita firma e fui esclarecido, mal e tarde, pelos responsáveis da firma, porque razão é que eles haviam de querer um advogado português.
Bom. Cheguei, nove da manhã em ponto. Sentam-me numa cadeirinha dentro de um gabinete e dizem-me para esperar pela chefe. A chefe pelos vistos entra uma hora depois dos outros. Dez.
Hi, my name is Amy (eles adoptam nomes americanos para facilitar)
Hello
So... Are you American?
No... I’m Portuguese!...
....
You know, Portuguese... Pu Tau Ya!
Oooh, Pu Tau Ya!! Ok, ok...
And for how long is you go to stay? Six months, right?
For nine months...
Oh, yeah, right...
Um bom começo, não há dúvida. Quando ouço os outros colegas falarem de almoços de recepção oficial que as suas empresas fazem em sua honra, encolho os ombros. Tive direito a um ten yuan almoço, num tabuleirinho e trazido até ao meu gabinete. Bem bom. Para quem já andou quase a mandar-se da janela abaixo por causa deste disparate pegado que foi eu ter vindo para aqui, isto foi um tónico. Aquilo que justificou abandonar a minha alma metade, deixar tudo e todos, para arriscar uma vida melhor para mim e para os meus, não sabe de onde eu venho nem por quanto tempo fico. Muito bom. Só me motivou, em abono da verdade. Pois que serei eu que construirei a(s) oportunidade(s). Não é agora, agora que o pior já está feito, que vou baixar os braços.
Afinal, a Capital Associates não mais é que o braço jurídico da NCO, que se complementa com o braço contabilístico da NCO-A(ccounting). Mas trabalho para a NCO Consulting, consultora que essencialmente apoia empresas estrangeiras que queiram implantar-se na China, seja de que forma for (excepto exportações). Trata apenas das questões de cariz burocrático, ao nível da emissão de licenças e autorizações para o início e manutenção do exercício da actividade. “Apenas”, não. Na China, tudo o que é administrativo e da coutada burocrática pode ser muito demorado. Pelos vistos, estes tipos têm uma qualquer ligação privilegiada com alguns sectores da Administração Chinesa e é nisso que baseiam a sua actividade.
Então, aqui estou eu na China, a rever e corrigir textos traduzidos do mandarim para o inglês macarrónico deles e a representar a firma junto de estrangeiros. Não estou totalmente insatisfeito com as tarefas em si, até porque espero em breve começar a ter contacto com a legislação chinesa propriamente dita. O problema é que não me dão praticamente nada para fazer. Ou então quando me dão, é um textito de duas ou três páginas para cuja correcção me dão o resto do dia, quando eu despacho aquilo em meia hora...
Mas não tem sido sempre assim. Esta semana até foi animada. Já tenho cartões, o que por aqui tem uma importância fundamental. Aqui, quem não tem cartão não só não entra, como simplesmente não é.
Carrefour
Confrontados com a necessidade básica de comer e um pouco cansados de grelhados em directo na mesa do restaurante com desastrosas consequências para o odor dos vestuários e enjoados de sabores muito ou muitíssimo desconhecidos, decidimos que a palavra Carrefour só podia trazer algo de bom. E assim é. Pequim tem um, com a configuração física que conhecemos. Porém, também aqui se prova um pouco da China diferente, tão diferente como só outra civilização podia representar.
Há verdades absolutas. E uma delas é a verdade do hipermercado. Um hipermercado é um hipermercado é um hipermercado. Nem mais nem menos. Muitas coisas à venda, expostas em prateleiras, à disposição do cliente, que as tira a seu bel-prazer e que as paga no fim. Uma musiquinha de elevador, baixa, interrompida por discretos avisos fanhosos de uma menina do estabelecimento metida a locutora de anúncios de tv. Confusão ao fim de semana, com criancinhas histéricas a correr de um lado para o outro e famílias vastas a ocupar metades de corredores. Esta é uma verdade absoluta, daquelas que nos conforta, pois sabemos que será sempre assim. Contudo, existe uma outra verdade absoluta, que é a verdade do hipermercado chinês. Inclui carrinhos, cestos, famílias vastas e inúmeros artigos à venda, mas também inclui tudo aquilo que nós temos nas feiras tradicionais das terrinhas dos nossos pais. Há concorrência dentro do hipermercado, onde uma banca de laranjas pode ser mais ou menos bem sucedida consoante a qualidade e o volume sonoro do pregão que o respectivo vendedor emprega. Por vezes, há dois vendedores do mesmo produto separados por meio metro, cada um a berrar a plenos pulmões, dizendo, certamente, que a sua truta é melhor que a do vizinho. E o resultado é fantástico, pois comprar um quilo de camarão médio/grande por três euros não é algo de que todos possam gabar-se em Pu Tau Ya. Além deste frenesim, existe um leque variado de legumes exóticos, peixes estranhos, vivos e mortos, carnes disto e daquilo, já cozinhadas ou cruas, dezenas de qualidades de pão, enfim... Aqui, a expressão "self-service" adquire um novo sentido, quando nos apercebemos que se queremos carne, temos de levantar o vidro da montra e tirar nós próprios a carne que queremos levar. O talhante é o cliente. O empregado pesa a carne.
À saída desta feira moderna, contacto com outra realidade: a miséria. Há hordas de pedintes, quase todos senhoras idosas com um aspecto deplorável, mais sujas e mais maltrapilhas que os congéneres europeus mas que, na verdade, não pedem comida, porém exibem um recibo de compras, repetindo incessantemente uma ladaínha que naturalmente não compreendemos. Suspeito que elas peçam que lhes paguem uma conta daquelas, mas julgo que nunca saberei com certeza. Já vimos pessoas a remexerem em caixotes do lixo e meninos de sete, oito anos, sujos de meses, a pedir insistentemente, perseguindo os estrangeiros. Mas quanto a isto não vou alongar-me; não vale a pena descrever uma realidade que é universal e que aqui não é excepção.
Há verdades absolutas. E uma delas é a verdade do hipermercado. Um hipermercado é um hipermercado é um hipermercado. Nem mais nem menos. Muitas coisas à venda, expostas em prateleiras, à disposição do cliente, que as tira a seu bel-prazer e que as paga no fim. Uma musiquinha de elevador, baixa, interrompida por discretos avisos fanhosos de uma menina do estabelecimento metida a locutora de anúncios de tv. Confusão ao fim de semana, com criancinhas histéricas a correr de um lado para o outro e famílias vastas a ocupar metades de corredores. Esta é uma verdade absoluta, daquelas que nos conforta, pois sabemos que será sempre assim. Contudo, existe uma outra verdade absoluta, que é a verdade do hipermercado chinês. Inclui carrinhos, cestos, famílias vastas e inúmeros artigos à venda, mas também inclui tudo aquilo que nós temos nas feiras tradicionais das terrinhas dos nossos pais. Há concorrência dentro do hipermercado, onde uma banca de laranjas pode ser mais ou menos bem sucedida consoante a qualidade e o volume sonoro do pregão que o respectivo vendedor emprega. Por vezes, há dois vendedores do mesmo produto separados por meio metro, cada um a berrar a plenos pulmões, dizendo, certamente, que a sua truta é melhor que a do vizinho. E o resultado é fantástico, pois comprar um quilo de camarão médio/grande por três euros não é algo de que todos possam gabar-se em Pu Tau Ya. Além deste frenesim, existe um leque variado de legumes exóticos, peixes estranhos, vivos e mortos, carnes disto e daquilo, já cozinhadas ou cruas, dezenas de qualidades de pão, enfim... Aqui, a expressão "self-service" adquire um novo sentido, quando nos apercebemos que se queremos carne, temos de levantar o vidro da montra e tirar nós próprios a carne que queremos levar. O talhante é o cliente. O empregado pesa a carne.
À saída desta feira moderna, contacto com outra realidade: a miséria. Há hordas de pedintes, quase todos senhoras idosas com um aspecto deplorável, mais sujas e mais maltrapilhas que os congéneres europeus mas que, na verdade, não pedem comida, porém exibem um recibo de compras, repetindo incessantemente uma ladaínha que naturalmente não compreendemos. Suspeito que elas peçam que lhes paguem uma conta daquelas, mas julgo que nunca saberei com certeza. Já vimos pessoas a remexerem em caixotes do lixo e meninos de sete, oito anos, sujos de meses, a pedir insistentemente, perseguindo os estrangeiros. Mas quanto a isto não vou alongar-me; não vale a pena descrever uma realidade que é universal e que aqui não é excepção.
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