O dia foi longo. Começou no Porto, em casa, no lugar de todo o princípio e de todo o fim, bem de manhã e só veio a terminar trinta e três horas e dez mil quilómetros depois.
A viagem só começa verdadeiramente em Londres, pois é só lá que me apercebo realmente que estou a deixar o país. Sempre sonhei conhecer Londres, talvez mais que qualquer outra cidade e só a cheiro, só a vislumbro, como se olhasse por menos que um segundo pela porta entreaberta do quarto de uma bela mulher. Ela lá jaz, deitada, imponente, vasta, cheia de traços e de luz, pelo menos lá do meu ponto alto de voyeur envergonhado, escondido pelo lusco-fusco do cair do dia. Parece desafiar-me a descer, a atirar-me da janela, exibindo despudoradamente o seu esplendor de cidade das cidades, mãe da civilização, no seu maldito sotaque arrogante de supremacia perdida.
Ali, tudo parou, para parar para sempre. Não é fácil sair. E quando não é desejado, dói mais ainda.
Quando entrei naquele corredor de fole, olhei para trás e vi-te uma última vez. Vi-te e amei-te, mas mais ainda naquele momento, como se pudesse te tivesse guardado nas mãos a minha alma tua, para só o corpo inanimado pisar o passo seguinte no funil que fazia cadafalso.
O avião é recente e confortável, tem ecrãs nas costas de cada assento. Vou acompanhando a rota, pensando nos povos e na História que dormem por baixo dos meus pés e no quanto mais me distancio de tudo o que é bom e perfeito. A Alemanha, grandiosa, a Mãe-Rússia, infinita. Curiosamente iguais, vistas dos olhos acríticos do voador nocturno, que nada vê senão o mesmo no meio da democrática escuridão. Até que, algumas horas mais tarde, esfrego os olhos sem deixar de beber o café. Aquilo lá em baixo, o que é? Olha, olha, já viste aquilo? Não te parecem fogueiras?
Fogueiras?
Sim! Onde estamos?... Na Sibéria... Já viste bem aquilo? Negro total, compacto, nenhuma luz, nenhuma povoação e, como estrelas num céu limpo, fogueiras. Uma aqui, outra ali, longe lá, mas perto aqui, de cima dos olhos de Deus. Não pode ser. Faróis de terra. Fogueiras gigantescas, suficientes para avisar os irmãos e os outros de que ali no meio do nada e da morte, há calor, há segurança, amizade pela simples circunstância de sermos homens. Saído de um conto de fadas e dragões.
Ainda mal refeito do choque, o dia nasceu. Prematuro de seis horas, mas lá surgiu. Belo, rubro, nada mais queria que mostrar-me o tesouro do planeta que esconde em segredo. Um maravilhoso despertar, de onde se vê a batalha entre o ontem que ainda não se tornou e o hoje que não nasceu. O negro lá atrás e o laranja mais depois. Ver a noite e o dia ao mesmo tempo, neste meu tempo relativo, onde apesar de serem doze horas sao ainda quatro. Olho para baixo e começo a ver finos recortes de pedra castanha e vermelha, altos como formidáveis cordilheiras, penhascos e desfiladeiros coroados de neve estranha, rija, imóvel, velha de mil anos. Autênticas cicatrizes na face da Terra, eis que as suas trompetas anunciam a chegada dessa menina dormente.
Areia, fina de farinha e quase tão branca... Parece um enorme bolo, com dunas muito suaves, areia intocada há séculos.
Desenhos rectos, circulares, angulosos. Riscados por infindáveis passos e pegadas de caminhos milenares caminhados por nómadas, homens que já não há em parte alguma do planeta.
Gobi.
A viagem só começa verdadeiramente em Londres, pois é só lá que me apercebo realmente que estou a deixar o país. Sempre sonhei conhecer Londres, talvez mais que qualquer outra cidade e só a cheiro, só a vislumbro, como se olhasse por menos que um segundo pela porta entreaberta do quarto de uma bela mulher. Ela lá jaz, deitada, imponente, vasta, cheia de traços e de luz, pelo menos lá do meu ponto alto de voyeur envergonhado, escondido pelo lusco-fusco do cair do dia. Parece desafiar-me a descer, a atirar-me da janela, exibindo despudoradamente o seu esplendor de cidade das cidades, mãe da civilização, no seu maldito sotaque arrogante de supremacia perdida.
Ali, tudo parou, para parar para sempre. Não é fácil sair. E quando não é desejado, dói mais ainda.
Quando entrei naquele corredor de fole, olhei para trás e vi-te uma última vez. Vi-te e amei-te, mas mais ainda naquele momento, como se pudesse te tivesse guardado nas mãos a minha alma tua, para só o corpo inanimado pisar o passo seguinte no funil que fazia cadafalso.
O avião é recente e confortável, tem ecrãs nas costas de cada assento. Vou acompanhando a rota, pensando nos povos e na História que dormem por baixo dos meus pés e no quanto mais me distancio de tudo o que é bom e perfeito. A Alemanha, grandiosa, a Mãe-Rússia, infinita. Curiosamente iguais, vistas dos olhos acríticos do voador nocturno, que nada vê senão o mesmo no meio da democrática escuridão. Até que, algumas horas mais tarde, esfrego os olhos sem deixar de beber o café. Aquilo lá em baixo, o que é? Olha, olha, já viste aquilo? Não te parecem fogueiras?
Fogueiras?
Sim! Onde estamos?... Na Sibéria... Já viste bem aquilo? Negro total, compacto, nenhuma luz, nenhuma povoação e, como estrelas num céu limpo, fogueiras. Uma aqui, outra ali, longe lá, mas perto aqui, de cima dos olhos de Deus. Não pode ser. Faróis de terra. Fogueiras gigantescas, suficientes para avisar os irmãos e os outros de que ali no meio do nada e da morte, há calor, há segurança, amizade pela simples circunstância de sermos homens. Saído de um conto de fadas e dragões.
Ainda mal refeito do choque, o dia nasceu. Prematuro de seis horas, mas lá surgiu. Belo, rubro, nada mais queria que mostrar-me o tesouro do planeta que esconde em segredo. Um maravilhoso despertar, de onde se vê a batalha entre o ontem que ainda não se tornou e o hoje que não nasceu. O negro lá atrás e o laranja mais depois. Ver a noite e o dia ao mesmo tempo, neste meu tempo relativo, onde apesar de serem doze horas sao ainda quatro. Olho para baixo e começo a ver finos recortes de pedra castanha e vermelha, altos como formidáveis cordilheiras, penhascos e desfiladeiros coroados de neve estranha, rija, imóvel, velha de mil anos. Autênticas cicatrizes na face da Terra, eis que as suas trompetas anunciam a chegada dessa menina dormente.
Areia, fina de farinha e quase tão branca... Parece um enorme bolo, com dunas muito suaves, areia intocada há séculos.
Desenhos rectos, circulares, angulosos. Riscados por infindáveis passos e pegadas de caminhos milenares caminhados por nómadas, homens que já não há em parte alguma do planeta.
Gobi.
1 comentário:
De tanto ouvir falar em virgindade desse árido e paradoxalmente acolhedor deserto, parece que venho eu aqui abrir as hostilidades inaugurando a secção dos enchidos (que é como quem diz - ou escreve - comentários).
Já ficas a saber « ó gajo dos dentes» que isto de escrever na blgosfera para mim é um martírio , mas como até poes umas fotos bonitas - e afinal dentro de ti tb tens veia poética alem da porcaria que andas comer - vou ver se ando por aqui atento e vou fazendo pequenas incursões neste espaço virtual do never-never land dos palpitosos (blogs).
E assim sempre vamos matando saudades.. A Joana manda um beijinho.
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