Os Mundos e a Porta

Os Mundos e a Porta

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Do Direito e da Vontade de Votar - Parêntesis

Anteontem recebemos um email do ICEP informando que, no âmbito do referendo de onze de Fevereiro, não será possível aos estagiários votarem nos países onde estão colocados, pois de acordo com a lei, é necessário estarem recenseados junto dos respectivos consulados, algo que ninguém fez em tempo pois todos chegaram aos seus destinos há uma, duas semanas. Reza também essa missiva que todos quanto desejem deslocar-se a Portugal para exercerem o seu direito-dever de voto poderão fazê-lo, conquanto cumpram o horário de trabalho nos locais de estágio na sexta feira anterior e na segunda feira seguinte e que paguem a viagem. Muito bem. Sabendo que uma viagem de ida ou de volta de e para Pequim leva cerca de vinte horas, é por demais patético imaginar que todos os recém-luso-pequineses vão a correr até Portugal, mesmo a tempo de chegar, pôr o papelinho e voltar, rezando para que nenhum avião se atrase. E gastando cerca de setecentos e cinquenta euros no passeio.
Recordo-me de estudar a matéria da restrição de direitos para certos agentes do Estado que, normalmente em razão da função que desempenham, não podem exercer certos direitos. Isso não se aplicaria nunca, porque não somos agentes do Estado. Ainda assim, mesmo com uma daquelas interpretações analógicas malucas que por vezes se vêem por aí, coarctar o direito de voto, não obstante ser apenas de facto, isso, é uma novidade.

Ainda por cima, gostaria muito de votar neste referendo. Porque cheguei a uma conclusão sobre qual a posição a tomar na matéria, de acordo com um determinado quadro de valores que julguei o melhor a adoptar e que me pareceu sólido e coerente. Levei anos a conseguir tal feito de forma ponderada, mas lá consegui. Procurei dar resposta às questões colocadas a quem quer mudar a actual lei. Porque na raiz a questão é essa: é necessário e/ou vale a pena alterar a lei que temos? E dei.

1 - Legalizar o aborto permitirá às mulheres abortar em condições de higiene e segurança.
R.: É falso. Como disse o Senhor Ministro da Saúde, vão ser clínicas privadas que vão realizar a maioria dos abortos. Ou seja, a preços inacessíveis para a maioria das portuguesas, que vão continuar a recorrer aos vãos de escada e às agulhas de crochet.
2 - A mulher tem direito à auto-determinação e, por isso, de decidir o que fazer com o seu corpo.
R.: Falso. A partir do momento em que a mulher sabe que está grávida, sabe também que, ressalvando imprevistos, dali resultará uma vida humana autónoma, que padece apenas da circunstância transitória de ser carregada e alimentada por outro ser humano. Até a mulher mais analfabeta e incapaz do mundo consegue perceber isso. Ou seja, como quem tem direito a auto-determinar-se é a pessoa humana, esse direito não pertence à mulher, mas ao embrião/feto, que obviamente não pode manifestar a sua vontade acerca de ser abortado ou não. Mas podemos calcular qual seria a sua opinião...
No limite, o direito à auto-determinação será na prática superior ao valor da vida? Cada pessoa deverá ser dona e senhora do seu próprio destino, sem intromissões de qualquer espécie, que reduzam a sua liberdade inquestionável de dispor de si mesmo. Basta pensar um pouco na razão que leva a que o suicídio não seja punido pela lei portuguesa e por inúmeros outros ordenamentos jurídicos - pondo de parte desde já a questão da própria punibilidade do suicida bem sucedido. Será lícito, do ponto de vista moral, impedir alguém de cometer suicídio que só o não faz porque vive prisioneiro de uma cama, não podendo mexer um dedo que seja? E, partindo destes pressupostos, é incoerente recusar a legalização do aborto e concordar com a da eutanásia? Não me parece.
3 - Por vezes é preferível impedir o nascimento de uma criança que, atendendo ao cenário sócio-económico dos pais, viria a ser infeliz e a passar sérias necessidades.
R.: É discutível. As verbas que vão ser gastas na campanha e no referendo, somadas ao ainda que pouco dinheiro injectado no Serviço Nacional de Saúde para pagar abortos, serviria pelo menos no momento para qualificar decisivamente as instituições que acolhem crianças abandonadas. E há algumas bem conhecidas, que muito bem fazem a essas crianças e cujo exemplo prova a consistência destas coisas: Ajuda de Berço, Lar Aboim Ascensão, Casa do Gaiato, etc...

Como é possível votar sim num referendo destes? É uma refinada cambalhota: como não fui abortado, posso hoje votar sim...
http://www.youtube.com/watch?v=CkYkuZaq6Jw

Eu, de mim para mim e para com os meus botões, aqui fechadito a olhar para Ocidente, voto não. E nem Cristo ou Maomé, nem Direitas ou Esquerdas têm rigorosamente algo que ver com isto. Nunca tiveram.

A Confissão.

Deserto de Gobi porque ele é a ansiada primeira porta que vou cruzar embargado no dia bendito em que tirar os pés deste outro velho mundo, pois que representa o regresso, porque é sinónimo de vida e não de morte, de ti e não dos outros, pois que és tu que virás a mim e eu a ti, repondo as coisas como elas sempre deveriam ter sido.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Sir, Sir, Want Cashmere?



A odisseia no Zhaolong continua. Depois de três dias à procura de casa, escolhemos finalmente uma. Mas como é nova e não tem mobília, teremos de aguardar mais um pouco e permanecer na camarata dos sete euros diários, com WC comum ao piso e que nos tem proporcionado alguns momentos de descobertas, como avaliar até que ponto um chinês consegue libertar-se das produções rectais com a porta da casinha aberta e manter a maior descontracção, lendo uma revista e fumando um cigarro. Isto, para não falar do encontro imediato de terceiro grau que pode ser estar numa sanita ocidental e apanhar, numa das pernas, pingos do autoclismo de uma outra térrea ao lado, que está elevada e não tem menos que dez centímetros de altura na divisória entre latrinas. Mas há muito que só temos Zhaolong Sessions by night, dado que, após os repastos crepusculares no luso apartamento pioneiro daqueles que vieram antes de nós os três, ficamos por ali ou então vamos em busca de um café expresso. Só perto da uma da manhã apanhamos o VW Jetta amarelo com risca verde ou o Citröen ZX vermelho com risca preta de volta ao Hostel, viajando por uma nova Pequim, zonza de tanto néon e descansando do trânsito selvagem que a massacra durante o dia. Lá, perdemo-nos nas horas, actualizando diários ou dando uso nobre aos portáteis, nomeadamente, através de uma honrada disputa futebolística nessa maravilha da arte humana que dá pelo nome de Pro Evolution Soccer 6. Assim nos manteremos, até dia trinta e um, data histórica em que faremos finalmente o Little Portugal dos oito tugas na Torre B do complexo Ocean Express, condomínio fechado também na Dongsanhuan Beilu, mas mais a norte, do lado direito, atrás do imponente edifício do Banco da China.

Ao embarcar num dos ten yuan fare taxicab, dizemos algo como Xioushui e perante a perplexidade do pobre pai de família, reconhecemos a derrota e exibimos o mapa, onde essa coisa está escrita em rasto de formiga em fuga com as patas sujas de tinta. Ao chegar lá, confirmamos que aqui, aquilo que parece, não é. O Mercado da Seda é realmente um mercado. E é realmente um emaranhado de corredores, com centenas de bancas de comerciantes. Bancas semelhantes àquelas que conhecemos nas feiras de exposições, como stands, com não mais que seis metros quadrados cada. Mas ninguém pense que é uma feira ao ar livre à escala chinesa. Trata-se de um edifício, com vários andares, cheio de publicidade nas paredes exteriores, com escadas rolantes que transportam milhares de clientes carregados de sacos para cima e para baixo. Faz lembrar alguma coisa? Por momentos, muito breves mesmo, olhei para cima, esperando ver uma certa varanda da maternal autoridade.
Encontramos casacos, sobretudos, fatos de homem, fatos de senhora, fatos típicos, kimonos, lenços, gravatas, t-shirts, camisolas de lã, calças de ganga, calças de terylene, calças de bombazine, saias disto e daquilo, chapéus, roupa interior, sapatos de senhora, sapatos de homem, chinelos, sapatilhas, botas de montanha, relógios, jóias, máquinas digitais, leitores de mp3, câmaras, telemóveis, telescópios, consolas de jogos, filmes, computadores, leitores portáteis de dvd, artesanato e muito mais coisas.

O primeiro choque é o da gritaria generalizada. Bilingue. Sim. Espantosa, essa súbita capacidade dos chineses falarem outras línguas. Quando algum empregado vê um estrangeiro no corredor, começa a apregoar num cintilante, diversificado e correctíssimo inglês. E quando os outros o ouvem, começam a gritar ainda mais forte, na língua que fez Shakespeare. E aqui, uma justa chamada de atenção aos vários comerciantes que não só falam inglês, como conseguem arriscar prognósticos sobre a nacionalidade do estrangeiro que têm à sua frente e soltam escorreitos "Olá!" para trás e para a frente. Bom, talvez fossem "Hola!", mas prefiro pensar que não.
O ambiente é febril, com os clientes a fugirem uns dos outros para não chocarem e a fugirem dos empregados dos pequenos pontos de venda, forrados com diferentes artigos. Sim, na Rua da Seda, em Pequim da China, foge-se dos empregados, porque de contrário, é-se literalmente sequestrado dentro do stand.
Virgem na matéria, vi um kimono interessante e recordei-me de uma encomenda que alguém me fez, ainda em Pu Tai Ya. Acerquei-me do dito e inquiri o custo da acetinada fatiota. A histeria à minha volta era total. Eu não queria entrar na loja, porque os outros portugueses já iam à frente e era fácil perceber que, se entrasse, demoraria a sair. A loja tinha duas empregadas. Uma puxou-me pelo braço para dentro e respondeu-me através de uma máquina calculadora. A outra ficou na fronteira entre o cubículo e o corredor, de costas para mim. Quando agradeci a informação e me dirigi para o corredor, a da calculadora, irritada, disse wait sir, best price, best price e martelou furiosamente na calculadora, mostrando um novo número, desta vez metade do primeiro. Repeti, thank you, only seeing, mas ela, valente, no sir, no, how much do you pay for it? I don't pay anything, I don't want it, ok? Pois. Na China, "não" quer dizer "tens de baixar o preço". Tive de escapar dali à força, sacudindo a primeira empregada e empurrando a segunda, que entretanto tentava impedir a fuga, barrando-me o caminho. Surreal.

O que o Mercado da Seda tem de especial não é só as peculiariedades dos vendedores e do local em si. São os preços, que mantêm uma relação muito desequilibrada com a qualidade dos artigos à venda. Vencido pela sedução de tamanhas bagatelas, acabei por cometer uma pequena loucura e permitir-me a mim mesmo deixar de ter de retirar o telemóvel do bolso sempre que quero ver as horas. Pois é para isso que serve um relógio. Mesmo um Tag Heuer Link por quinze euros regateados, depois de no início me serem pedidos trinta e cinco. Nada mal... Parece-me que ainda vou lá passar uma vezinha ou outra...

domingo, 28 de janeiro de 2007

O Cinzento e o Cimento.

Esta cidade é característica pela ausência de cor. Os prédios de cimento passaram-na às árvores e aos arbustos, doentes de tanto pó e fuligem. O sol não se vê de ponto algum da cidade, apesar de não haver uma única nuvem no céu. Muitas vezes, nem se consegue perceber em que lugar do céu ele está. A China do Chinezinho Limpópó ficou em Portugal com o Badaró. A dos outros meninos gordinhos com uns olhos esquisitos, que brincam entre árvores verdes e mães solenes e serenas vestidas de cetim comprido e pauzinhos enfiados nos coques que repreendem com um olhar doce, essa não é esta Conchichina que se mostra aos nossos olhos. Agora é a Pequim das vias circulares, cinco, já engolidas pela cidade, de sete e mais faixas de rodagem em cada sentido, dos arranha-céus de cinquenta e tal andares com enormes anúncios luminosos frenéticos e dos catorze milhões de habitantes. Mas ainda é a Pequim onde ninguém deixa passar ninguém nas passadeiras, onde se urina no meio da rua, onde as sanitas ainda são térreas, onde ninguém fala inglês, onde todos cospem na rua com a inspiração mais gutural possível e onde não há cães porque o governo cobra um imposto de quatro mil yuans por ano por cada cão que se possua. Ou seja, quatro salários mínimos nacionais.

O Zhaolong fica junto da Dongsanhuan Beilu, ou seja, junto da Terceira Circular. Seguindo Norte chega-se à zona das embaixadas, San Litun, que se prolonga por três ou quatro quarteirões de quatrocentos metros de lado cada um. É estritamente proibido parar o carro nessas ruas. Todas as embaixadas estão cercadas de paliçadas de metal, construídas não dentro mas fora dos territórios diplomáticos. Outras têm ainda rede com arame farpado em cima. Outras têm duas redes dessas, separadas por cinco metros de distância, prejudicando a largura das calçadas. E restam ainda umas poucas, que nem sequer estão ao acesso da vista, pois ficam em ruas que foram permanentemente cortadas ao trânsito automóvel não autorizado e aos transeuntes. O grau de segurança varia conforme a probabilidade de um cidadão chinês vir a obter o estatuto de asilado político se tivesse a ousadia de saltar para dentro dos muros da embaixada. As nórdicas parecem campos de concentração; a australiana uma autêntica caixa-forte. As inglesa e americana não se sabe, porque não se vêem. Porém, todas têm algo em comum: guardas do Exército Chinês, à porta da embaixada e até mesmo junto dos muros. São rapazes muito jovens, cujo único trabalho é estarem de pé, horas a fio, sob oito graus negativos, girando lentamente a cabeça, para um lado e para o outro, vigiando não os limites da legação estrangeira, mas os seus concidadãos. Sempre que algum se aproxima do portão da embaixada, caminhando pelo passeio, o guarda sai da sua posição, avança para a ponta do portão e acompanha o cidadão, lado a lado, quase a tocar-lhe, enquanto o fita fixamente nos olhos, até que ele tenha passado o portão. Depois, volta à posição inicial.

Temos ido várias vezes à nossa Embaixada. Como somos ocidentais, nunca tivemos honras de acompanhamento militar. Mas como os guardas já nos conhecem, recebemos um discreto "Ni Háo" quando chegamos, o qual retribuímos com um divertido "Zhai zhè" à saída. Depois vamos rua fora, a repetir em voz alta estes mistérios, exercitando músculos bocais cuja existência desconhecíamos. Protestamos contra a pouca dignidade do carro oficial, um modelo desconhecido aos olhos de um europeu. O edifício é grande, uma enorme moradia de dois andares. Tão imponente como a de Espanha. E tanto como a do Mali. Ironicamente, de uma arquitectura que faz lembrar os anos quarenta portugueses. Mas uma mera coincidência. São todas assim. As casas e as ditaduras. No fundo, todas iguais.

A História, a de ontem e a de hoje, dita cada segundo de todo o ser vivo.

O Zhaolong fica junto da Dongsanhuan Beilu,

ou seja, junto da Terceira Circular. Saindo à esquerda, temos logo a enorme Gongrentiyuchang Beilu, perpendicular à Dongsanhuan, que ao fim de três quilómetros para leste, apresenta-nos à esquerda o conjunto Cidade Proibida/Tiananmen. Atravessar esta avenida é reaprender conceitos que tínhamos em crianças. O verde do boneco é para respeitar se não houver outra hipótese e mesmo assim, sempre com cuidado com os que vêm da Gong e querem entrar na Dong em direcção a Chaoyang Sul, virando à direita, porque aqui, aqui, os carros têm sempre prioridade. E isto aplica-se a todos os cruzamentos da cidade. Não há verde nem passadeira que trave um carro. Nem mesmo outro carro, pois nesse caso, a resposta é o desvio, passando para a outra faixa sem avisar. Se um carro estiver a sair de uma garagem ou de um estacionamento, ele simplesmente avança, sem se preocupar com os outros que circulam na estrada. Todos se desviam, uns dos outros, para a esquerda, para a direita, mas sempre com uma regra em comum: nunca parar, excepto se a colisão for absolutamente inevitável. Mas todos andam devagar e ninguém pisa traços contínuos. A dinâmica está de tal modo generalizada que não há acidentes, apenas muitas buzinadelas e sinais de luzes que não expressam protesto, mas aviso de presença. Aliás, nunca vimos condutor algum insultar, reclamar, dar murros no volante, fazer gestos obscenos com os dedos ou alterar um mílimetro que seja da expressão facial perante as barbaridades que se vêem ou perante a iminência de acidente que, mal, se adivinha.

Não são barbaridades. É assim.

sábado, 27 de janeiro de 2007

DJÁOLHONG BINGU AN!

Após algumas horas de encontro, os arredores da cidade de Pequim surgem lentamente. Constante facto marcante: as inúmeras fileiras de edifícios exactamente iguais, albergues ou morada de algumas centenas de milhar de operários das indústrias ali instaladas.
Quando sentimos o baque, percebemos que é real. O palco das nossas memórias infantis mais exóticas. Feito de terra, vento e gente. O avião estacionou e quando cruzei a porta, senti uma corrente de ar, diferente, gélida e com um cheiro novo. Era a China.

As malas ficaram em Lisboa e tivemos de esperar quatro dias para mudar de roupa. Mas a senhora que nos garantiu no Francisco Sá Carneiro que as malas nos acompanhariam nas duas vezes que mudámos de avião ainda deve estar descansada a pensar que a sua vida é perfeita. E assim deve ser, pois foi a British Airways que nos pagou a indemnização e não ela. É bom ser tuga.

Dizer Zhaolong parece fácil. Em português diz-se começando por um "z". Mas em mandarim, não é bem assim. Apresentámos a página do Lonely Planet, que tinha a inscrição em mandarim da pousada da juventude que havíamos escolhido para permanecer temporariamente. Apercebemo-nos então de algo muito comum em Beijing e que nos perseguiria para sempre: a cidade é tão grande que muitas vezes os taxistas não sabem onde ficam certos locais ou moradas. É como pedir a um taxista do Porto para nos levar à Avenida da República em Felgueiras. Aquele não sabia onde ficava a Zhaolong International Youth Hostel. Bem dissemos: záolong! Ficou parvo a olhar para nós. Não satisfeitos, dirigimo-nos a um polícia dos táxis (sim, isto existe, é uma espécie de fiscalização dos táxis) e fizemo-lo entender que precisávamos que ele dissesse aquela morada ao taxista. Então, ele disse: "DJÁOLHÔNG, BINGU AN!" É isso mesmo, camarada polícia. Mas eu consigo dizer anticonstitucionalissimamente e tu não.

No táxi, silêncio geral, cabeças a rodar de um lado para o outro, como num jogo de ténis. O único som que havia era o de uma emissão de rádio que consistia numa longa e lenta prelecção monocórdica de um senhor claramente seguro do que estava a dizer, pois dizia o que dizia de forma sentenciatória, imperativa, intercalando a firme propaganda com reflexivos momentos de silêncio. Esse senhor deve ser muito popular, pois viríamos a ouvi-lo muitas vezes noutros táxis. Ao contrário da música, que nunca ouvimos em parte alguma, excepto nos restaurantes ocidentalizados. Como vozes de gente na rua. Não se fala, nas ruas de Pequim.

Lá fui. Para o resto das nossas vidas.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

O Encontro.

O dia foi longo. Começou no Porto, em casa, no lugar de todo o princípio e de todo o fim, bem de manhã e só veio a terminar trinta e três horas e dez mil quilómetros depois.

A viagem só começa verdadeiramente em Londres, pois é só lá que me apercebo realmente que estou a deixar o país. Sempre sonhei conhecer Londres, talvez mais que qualquer outra cidade e só a cheiro, só a vislumbro, como se olhasse por menos que um segundo pela porta entreaberta do quarto de uma bela mulher. Ela lá jaz, deitada, imponente, vasta, cheia de traços e de luz, pelo menos lá do meu ponto alto de voyeur envergonhado, escondido pelo lusco-fusco do cair do dia. Parece desafiar-me a descer, a atirar-me da janela, exibindo despudoradamente o seu esplendor de cidade das cidades, mãe da civilização, no seu maldito sotaque arrogante de supremacia perdida.

Ali, tudo parou, para parar para sempre. Não é fácil sair. E quando não é desejado, dói mais ainda.

Quando entrei naquele corredor de fole, olhei para trás e vi-te uma última vez. Vi-te e amei-te, mas mais ainda naquele momento, como se pudesse te tivesse guardado nas mãos a minha alma tua, para só o corpo inanimado pisar o passo seguinte no funil que fazia cadafalso.

O avião é recente e confortável, tem ecrãs nas costas de cada assento. Vou acompanhando a rota, pensando nos povos e na História que dormem por baixo dos meus pés e no quanto mais me distancio de tudo o que é bom e perfeito. A Alemanha, grandiosa, a Mãe-Rússia, infinita. Curiosamente iguais, vistas dos olhos acríticos do voador nocturno, que nada vê senão o mesmo no meio da democrática escuridão. Até que, algumas horas mais tarde, esfrego os olhos sem deixar de beber o café. Aquilo lá em baixo, o que é? Olha, olha, já viste aquilo? Não te parecem fogueiras?

Fogueiras?

Sim! Onde estamos?... Na Sibéria... Já viste bem aquilo? Negro total, compacto, nenhuma luz, nenhuma povoação e, como estrelas num céu limpo, fogueiras. Uma aqui, outra ali, longe lá, mas perto aqui, de cima dos olhos de Deus. Não pode ser. Faróis de terra. Fogueiras gigantescas, suficientes para avisar os irmãos e os outros de que ali no meio do nada e da morte, há calor, há segurança, amizade pela simples circunstância de sermos homens. Saído de um conto de fadas e dragões.

Ainda mal refeito do choque, o dia nasceu. Prematuro de seis horas, mas lá surgiu. Belo, rubro, nada mais queria que mostrar-me o tesouro do planeta que esconde em segredo. Um maravilhoso despertar, de onde se vê a batalha entre o ontem que ainda não se tornou e o hoje que não nasceu. O negro lá atrás e o laranja mais depois. Ver a noite e o dia ao mesmo tempo, neste meu tempo relativo, onde apesar de serem doze horas sao ainda quatro. Olho para baixo e começo a ver finos recortes de pedra castanha e vermelha, altos como formidáveis cordilheiras, penhascos e desfiladeiros coroados de neve estranha, rija, imóvel, velha de mil anos. Autênticas cicatrizes na face da Terra, eis que as suas trompetas anunciam a chegada dessa menina dormente.

Areia, fina de farinha e quase tão branca... Parece um enorme bolo, com dunas muito suaves, areia intocada há séculos.
Desenhos rectos, circulares, angulosos. Riscados por infindáveis passos e pegadas de caminhos milenares caminhados por nómadas, homens que já não há em parte alguma do planeta.

Gobi.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Eu, Deserto.


O Deserto de Gobi é uma extensão de terra onde caberiam 14 Lusitânias, sendo partilhada pela Mongólia ao Norte, e pela China a Sul.

Na língua Mongol, Gobi significa "enorme e seco". O que em si, não é grande novidade. A novidade está em ser o deserto mais setentrional em todo o Mundo, com temperaturas que, por vezes no mesmo dia, sobem ou descem 32ºC... Só chove no Verão, tal como em toda a Ásia Amarela. Mas pouco. O que ele também tem de especial é o facto de ser deserto e poder encontrar-se lá de tudo: tendas, homens, mulheres, crianças, gazelas, navios encalhados (!), ovos de dinossauro e muitos suspiros, longínquos, de muitas partes da Terra, que sonham um dia pisar aquelas areias...

Na minha língua, Gobi significa partida, aventura, saudade, adrenalina, coragem, loucura. Significa a nova nau, a minha, pessoal, que não se vê, mas que representa uma tentativa, humilde, assustada de mil quilómetros que vou estar longe de ti e dos outros, mas sobretudo, longe do meu coração, que deixo aqui, onde o Gobi só existe nos suspiros e nos sonhos...