Os Mundos e a Porta

Os Mundos e a Porta

domingo, 28 de janeiro de 2007

O Cinzento e o Cimento.

Esta cidade é característica pela ausência de cor. Os prédios de cimento passaram-na às árvores e aos arbustos, doentes de tanto pó e fuligem. O sol não se vê de ponto algum da cidade, apesar de não haver uma única nuvem no céu. Muitas vezes, nem se consegue perceber em que lugar do céu ele está. A China do Chinezinho Limpópó ficou em Portugal com o Badaró. A dos outros meninos gordinhos com uns olhos esquisitos, que brincam entre árvores verdes e mães solenes e serenas vestidas de cetim comprido e pauzinhos enfiados nos coques que repreendem com um olhar doce, essa não é esta Conchichina que se mostra aos nossos olhos. Agora é a Pequim das vias circulares, cinco, já engolidas pela cidade, de sete e mais faixas de rodagem em cada sentido, dos arranha-céus de cinquenta e tal andares com enormes anúncios luminosos frenéticos e dos catorze milhões de habitantes. Mas ainda é a Pequim onde ninguém deixa passar ninguém nas passadeiras, onde se urina no meio da rua, onde as sanitas ainda são térreas, onde ninguém fala inglês, onde todos cospem na rua com a inspiração mais gutural possível e onde não há cães porque o governo cobra um imposto de quatro mil yuans por ano por cada cão que se possua. Ou seja, quatro salários mínimos nacionais.

O Zhaolong fica junto da Dongsanhuan Beilu, ou seja, junto da Terceira Circular. Seguindo Norte chega-se à zona das embaixadas, San Litun, que se prolonga por três ou quatro quarteirões de quatrocentos metros de lado cada um. É estritamente proibido parar o carro nessas ruas. Todas as embaixadas estão cercadas de paliçadas de metal, construídas não dentro mas fora dos territórios diplomáticos. Outras têm ainda rede com arame farpado em cima. Outras têm duas redes dessas, separadas por cinco metros de distância, prejudicando a largura das calçadas. E restam ainda umas poucas, que nem sequer estão ao acesso da vista, pois ficam em ruas que foram permanentemente cortadas ao trânsito automóvel não autorizado e aos transeuntes. O grau de segurança varia conforme a probabilidade de um cidadão chinês vir a obter o estatuto de asilado político se tivesse a ousadia de saltar para dentro dos muros da embaixada. As nórdicas parecem campos de concentração; a australiana uma autêntica caixa-forte. As inglesa e americana não se sabe, porque não se vêem. Porém, todas têm algo em comum: guardas do Exército Chinês, à porta da embaixada e até mesmo junto dos muros. São rapazes muito jovens, cujo único trabalho é estarem de pé, horas a fio, sob oito graus negativos, girando lentamente a cabeça, para um lado e para o outro, vigiando não os limites da legação estrangeira, mas os seus concidadãos. Sempre que algum se aproxima do portão da embaixada, caminhando pelo passeio, o guarda sai da sua posição, avança para a ponta do portão e acompanha o cidadão, lado a lado, quase a tocar-lhe, enquanto o fita fixamente nos olhos, até que ele tenha passado o portão. Depois, volta à posição inicial.

Temos ido várias vezes à nossa Embaixada. Como somos ocidentais, nunca tivemos honras de acompanhamento militar. Mas como os guardas já nos conhecem, recebemos um discreto "Ni Háo" quando chegamos, o qual retribuímos com um divertido "Zhai zhè" à saída. Depois vamos rua fora, a repetir em voz alta estes mistérios, exercitando músculos bocais cuja existência desconhecíamos. Protestamos contra a pouca dignidade do carro oficial, um modelo desconhecido aos olhos de um europeu. O edifício é grande, uma enorme moradia de dois andares. Tão imponente como a de Espanha. E tanto como a do Mali. Ironicamente, de uma arquitectura que faz lembrar os anos quarenta portugueses. Mas uma mera coincidência. São todas assim. As casas e as ditaduras. No fundo, todas iguais.

A História, a de ontem e a de hoje, dita cada segundo de todo o ser vivo.

O Zhaolong fica junto da Dongsanhuan Beilu,

ou seja, junto da Terceira Circular. Saindo à esquerda, temos logo a enorme Gongrentiyuchang Beilu, perpendicular à Dongsanhuan, que ao fim de três quilómetros para leste, apresenta-nos à esquerda o conjunto Cidade Proibida/Tiananmen. Atravessar esta avenida é reaprender conceitos que tínhamos em crianças. O verde do boneco é para respeitar se não houver outra hipótese e mesmo assim, sempre com cuidado com os que vêm da Gong e querem entrar na Dong em direcção a Chaoyang Sul, virando à direita, porque aqui, aqui, os carros têm sempre prioridade. E isto aplica-se a todos os cruzamentos da cidade. Não há verde nem passadeira que trave um carro. Nem mesmo outro carro, pois nesse caso, a resposta é o desvio, passando para a outra faixa sem avisar. Se um carro estiver a sair de uma garagem ou de um estacionamento, ele simplesmente avança, sem se preocupar com os outros que circulam na estrada. Todos se desviam, uns dos outros, para a esquerda, para a direita, mas sempre com uma regra em comum: nunca parar, excepto se a colisão for absolutamente inevitável. Mas todos andam devagar e ninguém pisa traços contínuos. A dinâmica está de tal modo generalizada que não há acidentes, apenas muitas buzinadelas e sinais de luzes que não expressam protesto, mas aviso de presença. Aliás, nunca vimos condutor algum insultar, reclamar, dar murros no volante, fazer gestos obscenos com os dedos ou alterar um mílimetro que seja da expressão facial perante as barbaridades que se vêem ou perante a iminência de acidente que, mal, se adivinha.

Não são barbaridades. É assim.

5 comentários:

DrKen disse...

Calculo que atravessar um desses espaços habitados por quarteirões de embaixadas seja por uma lado a inegável prova de que somos cidadãos (ou "cidadões" se eu fosse falasse como um ex-dirigente associativo hoje assessor de ministro) do mundo. E ao mesmo tempo algo via mal quando há guardas À porta - não por cortesia diplomática, ou por questºoes de segurança dos de dentro mas para imepdir a entrada dos do lado de fora. «Quis custodiet ipsos custodes».. Algo está muito errado quando a decisão sobre a vida de um Homem depende só e apenas do m2 que ocupa estando a diferença num mero muro - que por isso não pode ser um obstáculo fácil de transpor.

Quanto aos teus musculos bocais, faz-te bem que sempre evitas os excessos alimentares com que podes ser tentado a contrariar as saudades - sim, porque o mYagi Mendonça - começou esta viagem um bocado deprimido.

Trânsito é capaz de ser engraçado -sete faixas...isso nem no daytona...alem dos costumes "que não são bárbaros" , são como são ( e eu concordo em absoluto com a frase) pessaolemtne tenho curiosidade de saber como é a cidade em termso de criminalidade e sensação de segurança

gobi disse...

A criminalidade violenta é praticamente nula e por isso, o sentimento de insegurança corresponde. Há furtos, mas mesmo assim poucos... O sentimento de medo domina, mas não é dos ladrões.

McCap disse...

'Mas ainda é a Pequim onde ninguém deixa passar ninguém nas passadeiras, onde se urina no meio da rua, onde as sanitas ainda são térreas, onde ninguém fala inglês, onde todos cospem na rua com a inspiração mais gutural possível'

Deves-te estar a sentir perfeitamente em Portugal. Só falta a unhaca do mindinho comprida para ora tirar a cera do ouvido, ora para coçar a tomateira.

Freddy disse...

Essa do imposto dos cães é q me ficou nos olhos... Canecos!!! Será considerado uma tributação alimentar??? ;)

Já agora, lembro-me q alguém q ai foi me ter dito q se comia na rua coisas boas, ainda q desconhecidades, por 2 cêntimos no máximo!

gobi disse...

Comer na rua é muito perigoso, devido à (in)salubridade dos alimentos.

Acredito que trinques qualquer coisa por dois cêntimos. Mas refeições completas e com qualidade, nunca por menos que 1,5eur... Lol!