O povo chinês, curvado sob o peso das suas próprias contradições, não mais é que o projecto adiado – mas possivelmente inevitável – da nova potência dominante mundial.
Desde sempre foi assim. Os impérios vêm e os impérios vão. E não há nada que indique que a História tenha chegado ao fim e não continue o seu lento processo de recapitulação.
A China em si mesma é já um império e assim é há cinco mil anos. Porém, falo de outro império, falo d’ O Império. O domínio mundial, hoje exercido pelos Estados Unidos, mas inexoravelmente condenado a um fim. Será a China a terminar essa hegemonia norte-americana, ainda neste século.
No dia em que uma das mais perfeitas e raras manifestações da intervenção divina desaparece da face da terra, o contraste chinês não poderia ser mais pungente.
Por vezes, Deus toca alguns homens e algumas mulheres, transmitindo-lhes uma ínfima parte da Sua Graça, concedendo-lhes dons muito especiais. São capacidades ou vocações ou talentos que depois, quando concretizados numa tela, num livro, numa pedra bruta ou frente a um microfone, são a mão, os olhos e a voz de Deus ali replicados. O recurso à justificação divina explica-se facilmente. O tremor que se sente, o aperto no coração que se sofre emocionado, a falha momentânea na respiração que surge quando se vê, lê ou ouve uma verdadeira obra de arte, aquela leve tontura que vem do mais profundo do nosso inconsciente e que não conseguimos evitar, essa é a razão de invocar Deus e a sua intervenção para explicar o facto de serem homens, meros mortais, a criar tal inigualável expressão de beleza e de esplendor.
Este império, que vai tomar conta do mundo daqui a trinta anos, é controlado por um punhado de dirigentes invisíveis, políticos e económicos, que partilham e dispõem do poder como querem. O propósito comunista foi metido no bolso há muito tempo, quando o sucessor de Mao Zedong, Deng Xiao Ping, introduziu o conceito de um país, dois sistemas. Hoje, o que temos na China, é uma ditadura de cariz autoritário, herdeira adulta do totalitarismo adolescente do tempo da Revolução Cultural. Uma ditadura madura, assente em alicerces inamovíveis e, sobretudo, apoiada e acarinhada por uma massa humana anónima de mil e trezentos milhões de chineses voluntariamente adormecidos, anestesiados, como macacos de repetição de rituais quotidianos estupidificantes, pobres diabos cujo escape favorito é dormirem o mais que podem e onde podem, que deliberada e aliviadamente querem e gostam que uma dúzia de indivíduos, inimaginavelmente ricos e poderosos, lhes conduzam os destinos. Já não há ideais nem grandes timoneiros. Há um pragmatismo selvagem, que chega ao ponto de o governo anunciar que do dia x ao dia y o céu de Pequim vai estar limpo e depois nesse período, ao contrário do perpétuo smog que intoxica os pulmões e enegrece as almas, o céu está mesmo limpo graças aos éditos da autoridade. Ou ao ponto de até o próximo Dalai Lama pretender escolher por decreto, acabando com a tradição centenária de ser o Dalai Lama vivo a indicar o próximo recém-nascido a encarnar o Buda.
Mas onde está afinal o contraste?
Está no facto de como estamos a falar de uma massa informe de pessoas a quem não é dado qualquer contacto com qualquer forma de cultura que não seja a própria – arqueológica e estática, ou a nova cultura McDonald’s/KFC – desprovida de conteúdo, nunca este país terá a cultura, a arte e a criação como adjectivos do seu inevitável domínio global.
Será um domínio mundial sem a injecção permanente de cultura a que estamos condenados desde o final da Segunda Guerra Mundial. O que até pode nem ser mau de todo. Mas também será o tempo em que das poucas coisas que funcionam ou saem bem feitas das fábricas, duram pouco e nunca funcionam mesmo bem.
De resto, tudo é igual. Também no Império ainda existente e em muitos outros satélites, acontece o mesmo em termos de exercício oligárquico do poder. Um punhado manda nos outros todos, não havendo uma verdadeira democracia no aspecto de haver uma possibilidade real de escolher os líderes.
Mas nas nossas sociedades ocidentais, a democracia não se manifesta apenas no desenho de um cruz. Ela surge na sua mais bela forma na arte e na cultura, coisa que os Chineses já só têm nos museus e nos livros de História. Este povo está de tal modo anulado, de tal maneira acinzentado e formatado, que as únicas formas de revolta que se vêem hoje e que escapam, por vezes ilicitamente, à obsessão regulatória do Big Brother local são as pequenas vigarices, os escarros para o chão, a condução irresponsável, a deglutição ruidosa, a mentira fácil, o desleixo com tudo e muitas outras coisas.
Irónico é pensar que afinal, da teoria marxista, a única coisa que se vai verificar é que de facto a História vai repetir-se, que há um Império que mais uma vez vai ser substituído por outro, que a dialéctica hegeliana vai suceder, mas só na forma, porque na matéria, nada será revolucionário, apesar da mesma existência de directórios políticos. Tudo fogo de artifício.
E curioso é pensar que toda esta conclusão talvez não possa estar mais errada. Porque se nos lembrarmos do Portugal de há trinta anos, sabemos bem como era a nossa sociedade em termos de honestidade, de limpeza das calçadas, da segurança nas estradas, da educação à mesa e de muitas outras coisas...