Hoje, às oito horas da manhã, hora Portuguesa, faz cem anos que Lord Robert Baden-Powell, general do exército inglês, nascido a vinte e dois de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e sete, dava o primeiro toque de alvorada do primeiro acampamento escutista de sempre, na pequena ilha de Brownsea, na costa sul inglesa.
Foram vinte os primeiros rapazes, entre os onze e os catorze anos de idade, organizados em quatro patrulhas: Maçarico, Touro, Corvo e Lobo. Foram eles a dar início a um Movimento Mundial de educação não formal de crianças e jovens, que hoje conta com vinte e oito milhões de elementos em todo o Mundo e que tem como objectivo primordial a formação integral – espiritual, física, social, intelectual e afectiva – daqueles que serão os homens e as mulheres de amanhã.
O crescimento do Escutismo foi lento e com alguns obstáculos. Baden-Powell queria um Movimento abrangente, que rasgasse as espessas barreiras sociais da época, impondo uma vivência entre os rapazes rigorosamente igualitária, o que, na altura era totalmente inovador. Também devido a esse objectivo, foi decidido o uso de uniforme, para esbater diferenças sociais entre os rapazes. Porém, BP era um herói da Guerra dos Boéres profundamente respeitado na conservadora sociedade inglesa da época e esse foi o ponto que determinou o sucesso do Escutismo.
Ao longo dos anos, houve batalhas difíceis que o Escutismo teve de travar. A mais complexa terá sido talvez a usurpação que alguns regimes totalitários e autoritários da primeira metade do século XX fizeram do ideal escutista, surgindo-lhe sucedâneos grotescos como a juventude hitleriana ou a mocidade portuguesa. Ainda hoje o Escutismo é vítima desse aproveitamento, junto das camadas menos informadas da população, que associam o Escutismo a ideais de extrema-direita, equívoco grave que é reforçado pelo uso do uniforme ou da cada vez mais rara ordem unida (formaturas em estilo militar), práticas que têm finalidades exclusivamente pedagógicas e com sucesso comprovado.
Há Escutismo confessional e há Escutismo não-confessional, ou seja, ligado oficialmente ou não a uma religião, mas todo o Escutismo só o é se tiver subjacente uma vivência espiritual. E essa vivência é feita em função da aceitação da existência de Deus como criador da vida e do Homem, seja ele a Santíssima Trindade cristã, o Alá muçulmano, o Dalai Lama, Confúcio ou o Buda. O Fundador do Movimento acreditava que o homem só se realiza plenamente se assumir a dimensão espiritual da sua vida também em plenitude, não recusando aquilo que o distingue radicalmente do animal. A convicção da existência de uma Entidade Superior que ama cada um dos homens que caminham à face da Terra, que se expressa e plasma nas coisas mais simples, como a cor verde de uma folha de árvore, o calor reconfortante do sol na face, o sorriso cândido de uma criança ou tantas outras coisas que nos fazem sentir coisas inexplicáveis, não é uma patetice estupidificante, um engodo colocado pelas elites para adormecer ou inebriar as massas. É uma forma de estar na vida que afasta o cinismo que mata o verde, o calor e o sorriso. Sem pôr de parte a crítica racional, a intelectualidade. É uma escolha, que BP desafia a fazer.
Em Portugal, o Escutismo surgiu em 1913 pela mão da Associação dos Escoteiros de Portugal. Dez anos depois, foi formado o Corpo Nacional de Scouts – mais tarde, Corpo Nacional de Escutas (CNE) - por iniciativa da Arquidiocese de Braga. O primeiro Chefe Nacional – chamado à altura “Comissário Nacional” - era ele próprio um clérigo. É por isso que cai por terra o argumento de algumas pessoas, bem intencionadas com certeza mas mal informadas, que rotulam o Escutismo de “elitista”, não compreendendo a condição de se ser baptizado para se poder ser Escuteiro. Essa condição só existe para se aderir à Associação Católica de Escutismo (CNE), que é um organismo que tem uma origem e uma inspiração católicas, não podendo a ela fugir, sob pena de perda da sua própria identidade.
Sou Escuteiro desde os onze anos de idade. Fui Explorador Júnior, Pioneiro, Caminheiro, Caminheiro em Insígnia de Ligação e, desde dois mil e três, Dirigente. Fui Guia da Patrulha Águia, Guia da Equipa Lobo e Chefe de Equipa Che Guevara. Sou Chefe de Clã (comunidade de Caminheiros) do meu agrupamento local – 376 Coimbrões, agrupamento que ajudei a refundar. Tenho mais de duzentas noites de campo, das quais destaco dois acampamentos de núcleo, quatro acampamentos regionais, dois acampamentos nacionais e três jamborees internacionais. Sou Medalha de Campo III Classe – Bronze e II Classe – Prata, participei em staffs de acampamentos em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente o Acampamento Nacional de 2002 e o Jamboree Belga de 2003. Fui chefe de sub-campo no Acampamento Regional do Porto de 2005 e Chefe de Contingente do CNE no Acampamento Europeu de Caminheiros em 2006, em Itália. Fui Adjunto do Chefe Nacional para a IV Secção – Caminheiros, entre 2005 e 2007, liderando o respectivo Departamento Nacional.
E apesar de tudo isto, que é a uma história já longa de muitas honras e pequenas vaidades, não há nada que se assemelhe sequer de longe ao tremor discreto, à emoção contida, à explosão muda que sinto sempre que coloco o meu lenço de Escuteiro ao pescoço e o arrumo no colarinho, sempre que aprumo a minha camisa, sempre que estico melhor a meia, que corrijo a posição da jarreteira e que percebo a influência que o Escutismo teve e tem em mim e em tantos tantos outros. Nada se compara àquilo que sinto quando converso com um Caminheiro que foi Lobito e percebo claramente o quanto o Escutismo contribuiu para a formação do bom rapaz ou da boa rapariga que está ali à minha frente. Futuros homens e futuras mulheres com defeitos e com falhas, mas também com um ideal permanente que levarão ao peito como missão, fazendo todos os possíveis por cumprirem os seus deveres para com Deus, a Igreja e a Pátria, auxiliarem o seu semelhante em todas as circunstâncias e obedecerem à Lei do Escuta, procurando sempre deixar o Mundo um pouco melhor do que aquilo que encontraram.
Hoje faz cem anos, todo o Mundo está em festa e eu aqui, num dos cinco países do Mundo em que não há Escutismo oficial. Ironias do destino.